Cala o bico
Ora cá está um bom assunto em que a dicotomia, a dualidade ou a teoria dos contrários não têm cabimento, exemplifico: não há vinhos maus por oposição aos bons; há vinhos bons e menos bons! Tentando burilar o conceito: res bona, bene tibii!
E, para ajudar quem só veja trevas neste estilo narrativo, direi que é mais um olhar relâmpago e romântico sobre pequenos nadas da vida, que resgata ao esquecimento personagens castiças, que à sua época tiveram algum reconhecimento ou mesmo notoriedade, mas que, com a passagem do tempo, se afogaram num mar de coisas novas e diferentes, a que chamam esquecimento, ficando os seus nomes e gestas guardados única e dispersamente na memória de familiares ou amigos e respectivos descendentes, e no eco de dizeres.
Adiante:
As estórias de amantes de vinho, de que se destacam os bebericas, e a história da cultura do vinho, bem como a ciência enológica, têm sido feitas de avanços e recuos, ensaios e erros, e não só por "documentos, edifícios e objectos".
Não vai aqui o soldado afrontar o general e falar de Homero, da acção dos Romanos ou dos Tartessos, ou dos Franceses, do (enguiçado) Barão de Forester e/ou da D. Antónia, do País das uvas, ou outros que difundiram o culto e a cultura do vinho.
Poderiamos evocar, João Torrão, de Miranda (do Douro), quem, naquele tempo, teve as carícias e o direito a rei do mundo outorgados por seu avô. Eu também usufruí dessas prerrogativas, a pleno peito. O pai de João Torrão foi um micro empresário de taberna na mesma localidade, homem comedido, organizado, de poucas falas: serviço é serviço, conhaque é conhaque. Também o avô de João Torrão, procurou viver o seu dia-a-dia com alegria, de preferência sem altos nem baixos, nem sobressaltos. Era amigo de Avelino do Palancar (Quintarola junto a Miranda do Douro) que vendeu a vinha para comparar o lagar, tanto gostava dele; amizade que cultivou com prazer e dedicação quase doentios, tal a sua obsessão pelo Amigo.
Poderíamos ficar por aqui, presos à história da “palhinha de centeio”. Mas iremos mais longe, antes que nos calem o bico.
Recordemos rapidamente as seguintes designações atribuidas às entidades que historicamente têm vindo a tutelar o sector:
I - A “Junta Nacional do Vinho, pois este organismo de coordenação económica conduziu o sector vitivinícola, durante décadas (1937-1986)” .
II - O “Instituto da Vinha e do Vinho foi criado pelo Decreto Lei Nº 304/86 de 22 de Setembro, sucedeu à Junta Nacional do Vinho e a sua criação teve como principal objectivo adequar a organização corporativa ainda existente aos princípios e regras próprias da organização comum do mercado (OCM). Foi objecto de uma primeira alteração orgânica em 1993, tendo sido posteriormente reestruturado pelo Decreto-Lei nº 99/97 de 26 de Abril.”
III - A “Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica (ASAE) “http://www.asae.pt/”, foi criada por Decreto-Lei nº 237/2005, de 30 de Dezembro.” Todavia, a sua génese remonta a anos que não sei identificar, pormenor que não será relevante para este relato. Mais importante será que, para impedir que o vinho de sabugueiro, de martelo, ou produtor directo entrassem no mercado, fora produzida legislação que define o estatuto do vinho.
Se quisessemos, ainda, continuar a incursão pela história desta temática, não seria aqui descabido falar da filoxera, da lei seca, do Alcapone, de gangsters, que fazem sempre dum bom bouquet para tudo que seja notícia, ou argumento cinematográfico, e da lei do isqueiro, com o seu mote humorístico, ou, até, da lei das rolhas, de má memória. Aqui e ali sempre se achariam pontos de conexão.
Fiquemo-nos pelo produto nacional.
À data dos factos a que esta narrativa se reporta, produzia-se e consumia-se, profusamente, o chamado morangueiro, em prejuízo das restantes castas, mais caras e menos abundantes, nomeadamente, o Vinho dos Mortos, em cuja região produtora se achou a fonte para este relato.
É nessa altura que os fiscais começam a rondar as casas de pasto e as tradicionais tabernas à procura e identificação de quem vendia e consumia tal bebida.
Sempre houve prevaricadores neste mundo!
Sabendo disso, Quintino, empresário de taberna em Boticas - conhecido pela invenção do bordão «Vais e vens sempre a assobiar», fórmula expedita para controlar o filho, nas suas tentações de deitar os beiços à infusa, ou à torneira, de cada vez que ia à pipa - procura a ajuda e o parecer, do prócer juiz da Comarca de Chaves, Dr. Silvino Pires, conhecido por meritíssimo Dr. Lavradas - chancela toponímica, pois nascera na Aldeia de Lavradas, concelho de Boticas - figura a quem eram, ainda, atribuídas outras qualidades como: a astúcia, a bonomia, a graça e a fraternidade.
O meritíssimo aguçou o raciocínio e a douta e experiente argumentação, recordando-se de uma sentença que havia sido lavrada em boa época por déspota pouco escrupuloso, mas que encaixava aqui, com pertinência:
- "Escreva imediatamente abaixo da minha assinatura – ordenava o Príncipe a Rossi:
«Havendo-se a Duquesa Sanseverina lançado de novo aos pés de Sua Alteza, o príncipe permitiu que todas as quintas feiras o culpado tenha…» Assine isso – ordenou o príncipe. – E sobretudo não abra o bico calado, ouça o que ouvir anunciar na vila.”
Graças à informação atempada de Quintino, Dr. Silvino Pires, também ele alistado no batalhão de tintoreiros, ainda que fraco consumidor do produtor directo ou americano, avisou os taberneiros possuidores "do tal" para não satisfazerem os clientes com “tal” pedido, isto é: sempre que lhe pedissem um copo, ou mais (...), de morangueiro, dissessem que não tinham “tal”.
Só que se levantava uma questão bem pertinente, diga-se: “e que fazemos ao vinho? Isso vai ser um enorme prejuízo, até porque é praticamente o único stock que temos, para aviar e aliviar a clientela”.
O Juiz, fino como um alho, se bem pensou melhor disse: "olhai , ides chamar-lhe cala o bico”, como, aliás, tem, muito providencialmente, acontecido.
“Como assim”, perguntavam os taberneiros?:
“Se alguém entrar e perguntar:
- «Tem morangueiro?», dizem:
- «Desse, não! Só cala o bico!»
- «Ahn?»
- «Sim só tenho cala o bico! Deseja?»
- «Bom, serve!» É o que os bebedores pedirão, na ânsia de encanar um calistro”.
Agradeceram o aviso e, daí para a frente, sempre que alguém, em Boticas, entrava com secura e pedia do “tal”…! o taberneiro respondia em voz grave: “cala o bico e que fazenda!”, e aviava-os desse.
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