quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Conceitos e preconceitos

«Kaim! Kaim!kaim!» «Oh my God!»
Acordo em sobressalto, aflito, a tremer como um vencelho. Sinto uma onda de frialdade a passear-me a espinha, só de pensar que alguém bateu na minha cadela. Corro para a porta da cozinha, que escancaro, e chamo-a com voz angustiada: «Inês! Inês!» - e ela aparece com cara de caso, cabisbaixa, olhos mortiços, àquela hora da madrugada, alta. Que alívio! Afinal era uma matilha de rafeiros esfomeados, proscritos da arca de Noé, que, com ladrar lancinante, fugiam da ameça de algo contundente que alguém, provavelmente, lhes arremessara. Não pude inteirar-me, em absoluto, da naturteza do delito cometido por estes vira-latas, nem da severidade da sanção que lhes foi imposta. Sou, sim, testemunha da correria e do cuincar da matilha em fuga apressada, a tresandar a pânico. E quanto aforismo árabe “Os cães ladram e a caravana passa”, o que eu apenas estou habilitado a asseverar, num arremedo da afirmação do óbvio que tanto celebrou o conhecido militar francês morto na batalha de Pavia, Jaques de la Palisse, é que os cães ladraram!

Uf! No pasa nada! Take time, make yourself at home, relax: it’s over!A partir desse momento, voltei para o "quente" e reconciliei as pálpebras, ainda sem sono apreciável. Respirei fundo, ouvi música do meu agrado, em surdina e … fruí…
Vá lá, façam o mesmo! Podem ler os fragmentos desta crónica com música de fundo, fazendo jús à bondade da musicoterapia. Sugestões para os mais preguiçosos na escolha, distraídos ou catecúmenos: “Le Deserteur”, com “paroles” e voz de Serge Regeanine; "Ouro do tolo" de Raul Seixas; para o final, já com as pestanas entrelaçadas e as pálpebras a pesar toneladas de sono, mas, ainda assim, com a suficiente acuidade auditiva, oiçam algo de Miton Peython e …, finalmemente, sucumbam ao poder das ondas morféticas.
Até aqui, tudo bem! Os conselhos até são bons … já o texto que os plasma … com franqueza …o texto … a escrita suscita compaixão a analistas que escrutinem só (...) conteúdos! Muitos chavões desnecessários e muitos lugares comuns…
Pelo menos, os lugares comuns sempre terão o mérito de ser o ponto de partida para intressantes reflexões que, em regra, concitam.

Sabina! Diz-te alguma coisa a rima: baila, baila, bailarina, sempre escondida atrás da cortina…?
Adiante. Desde há trinta e seis anos que não me dou a enleios com ninguém - prata da casa à parte - e, já então, só com a labareda de um bom corpo feminino.
Talvez a magia da noite, talvez reminiscências de um sonho erótico qualquer, talvez mal acordado ou mal-humorado, dou comigo a rilhar - meditar, se preferirem, um conceito menos humilde - um chavão muito apaniguado dos disparos verbais de exagerado senso de masculinidade e virilidade exaltada, à flor da pele - com ou sem vigara, digo eu - “Comi aquela sedutora!” - Nunca entenderei onde radicam os fundamentos de tão popularizado chavão, pela enormidade da carga antropofágica que contém; da minha parte, em todo o caso, nada teria a opor - antes, deliciar-me-ia a ideia - a que fosse a gaja a assumir o papel de antropófaga.
Mas, enfim, são olhares e sentires diferentes sobre as pessoas e as coisas deste mundo.
A verdade e a mentira não mudam assim tanto com o deslizar contínuo da carruagem do tempo (lugar comum); e os preconceitos e os conceitos, mesmo que filosóficos, não se alteram só por acção dessa carroça puxada por relógios de sol (lugar comum). Os homens continuam biologicamente iguais aos dos séculos idos; e as mentalidades não sofrem rupturas abruptas e definitivas; vão mudando lentamente, porque o alívio do passado tem sido, na esmagadora maioria dos casos, lento e penoso; nada neste mundo vivo sempre em transformação, é finito, tal como nada é eterno (lugar não comum, mas oportuno). A ficção tende aproximar-se da realidade. Nada aqui é clássico (e, a sê-lo, como gostaria (...) seria imitação), tudo lugares-comuns, já que não há notícia de qualquer náusea ou convulsão política em preparação, muito menos na rua. Para já, contentemo-nos se houver, simultaneamente, menos descamisados e menos engravatados.
Para quem não queira, ou não possa embrenhar-se nestes conceitos de intelectualidade mais elaborada, avivo um pensamento do génio sadino, Manuel Maria Barbosa:
Neste pais marginal,
Onde a vaidade não se apaga:
Todo o cobarde faz força,
E mesmo valente se caga!

Continuando, à procura de fragmentos dum tempo perdido. E às vezes com um tiro no pé, não fora, eu, um burguesito!

Dizia eu: à medida que o tempo se esgota, mais enxoto o afadigado "Turra"que pulula a Lusitânia, a arrotar postas de pescada, palreiro, petulante e mau sémen de Adão. E constato, que essa figura trombeteira e narcísica, ora consciente ora distraída, é perigosa por traiçoeira. Mas também suicida, sobretudo se provocar, no outro, reacção de aparente e enganosa bonomia e a interpretar nesciamente, expondo-se a consequências que não previu. Mas, enfim, esta vida tem seu (...) preço! Sobretudo o de quem vê passar os comboios e sofre em silêncio (lugar muito comum), com ou sem vale de lágrimas; com ou sem efeitos colaterais!
Vou correr o risco de me crucificarem, ou, na melhor das hipóteses, ser apedrejado, se aqui e ali, atestarem deficiente concatenação no discurso, quando aparentemente alterar de feição brusca e deliberada a forma consistente, organizada e lógica exigida à trama conteudística da redacção, o que, a ser verdade, levaria irremediavelmente à perda da coerência, identidade ou constância estilística.
Sabina! te veo hoy un poco acojonado; ânimos, joder! No seas tan pesimista ni bipolar: que lo parió... deruba el muro; no te fíes de ciertos comunicólogos y sociólogos, ni en todos mozos de encargos y de noticias: te echam a la mierda a la vuelta de la esquina...
Sabina! vate a lo tuyo no te eches de menos: esta vida és puñetera y no de puta madre!
Sabina! No dejes que te jodam la música!
Estou tranquilo! Não fosse a vida de encantos e desencantos; inserção e desinserção; pára e arranca; fragmentada e una; lógica e irracional; soberba efilantrópica; alegre e triste; de sucessos e de infortúnios; de amor e de desenganos; etc, etc, etc...! Tudo lugares comuns, com que, alguns desafortunados, não raras vezes, apanham no toutiço (também conhecido por caveira ou calvário): carícias de chicote ou vergasta.
Continuando no discurso directo, é tempo de informar que nunca fui menino de coro, mas sobrinho neto de sacerdote, de quem fui sacristão (ajudante dessa arte, devo confessar). A vocação para o sacerdócio revelou- se-lhe aos vinte e um anos: não houve, pois, oportunidade para fulgor castrense. Guardo gratas recordações de uma relação, vivida, de grande amizade com este tio eclesiástico. Já do irmão (do padre), professor primário, comunista assumido, não tenho tantas recordações (não se devem tirar elações políticas desta confissão).
A minha genealogia atravessa os Laras, na mais pura linha de El Cid o Campeador... campeão da porrada!
E, talvez por essa herdança genética, ainda dou no duro, isto é, o corpo ao manifesto, apesar da idade, e de saber, desde há muito, que o homem é para pensar… e que com a mão na foice, não se enriquece (quando muito, se aquece) a trabalhar...
Estas são algumas vivências para, resumidamente, sem falsa modéstia, entender o sofrimento dos outros, novos e velhos, sem culpa aparente, só porque o mestre não previu o erro e involuntariamente se enganou, e não corrigiu, até ao momento, defeitos genéticos e outros males do corpo e da alma. Mas também, é nesta perspectiva que gosto dele – mestre - porque também falha.
Porque já vão sendo horas de abrir o relicário que custodia o pote da minha cidadania, aí vai: Para quem não sabe quem eu sou, apresento-me como filho varão e morgado, de uma família pequeno-burguesa com registo no planalto transmontano nordestino. Quando dei por mim na vida, confrontei minha mãe com o imaginário que então me assolava, assumindo-o com toda a frontalidade: - «mamã quero ser grande!»- Como não cresci mais do que um metro e setenta, só teria uma solução: Colar-me aos mais baixos! Esta experiência não solvia a situação, porque ironicamente manicaística, e não me aquecia as veias de alegria. Procurei distanciar-me dos baixos para evitar humilhá-los; e dos mais altos para não lhes chegar azeite ao ego. E acabei por tirar uma conclusão muito importante: O problema era, sobretudo, dialético! Não se tratava de altura correcta, que era relativamente irrelevante, mas da altura certa; descoberta tardia, devo confessá-lo. Reflexões, no silêncio, levar-me-iam a concluir que o retrato a meio corpo seria a síntese ideal para a minha estatura.
Adoptei a posição de sentado, com sorriso matreiro ao canto da boca, sem cachimbo. Anel de banho de ouro trabalhado, ainda que discreto, no 5º dedo da mão direita - não me convinha mostrar a mão esquerda por defeito no quarto dedo, sequela de rebentamento de coronha de espingarda de carregar pela boca, que um vizinho me emprestara para dizimar tordos para a “arrozada”, a quem mais tarde caberia, por pior sorte, morrer despedaçado por rebentamento de granada durante a guerra colonial, em Angola. Voltando à minha pose: A minha mão direita não dava qualquer posição especial aos dedos, nem tapava parcialmente a boca. Apoiava-se no cotovelo e, fazendo uma cova com que escorava o queixo e a cabeça, dali resultava um efeito que, aprimorado pelos retoques por si aconselhados, espantou o próprio fotógrafo, levando-o a dizer enfaticamente: Um pensador!!!
Aqui chegado, não resisti pedir a algumas musas, que emprestassem as suas catedrais para me sentir confortado, com elas de perto, em devota atitude. Como que antevendo, para o Além, a satisfação da fatia que um desafortunado mortal não pode ainda almejar: O ter conseguido estar entre tudo e entre todos que fariam as delícias terrenas.
Desfiri um golpe demolidor em todo o espartilho que se abateu sobre Camões, sobre o seu destino, sobre a sua desventura. Vou ajudá-lo a libertar-se da vida mísera que levara e subi-lo ao céu da «Ilha dos Amores». Premiá-lo e compensá-lo de todas as privações, de todos os esforços e canseiras. Levar-lhe o recado de Samuel Beckett: «Não há nada mais cómico de que a própria desgraça». Dar-lhe tantas Nereidas quantas Vénus julgue necessárias para que « possa ser feliz ao natural... e senhor de um amor livre e espontâneo ao luar».
O esplendor poético, cantante do amor às coisas simples, arrastará na correnteza das águas engrossadas e revoltas do Douro - aquelas que, no "Cachão", capricharam na imolação pelo naufrágio da nave em que seguia o barão de Forrester - os bodes, carcereiros e carrascos do «Doce sonho», dando-lhe a alegria, o fulgor, o ímpeto, a vida, a tudo quanto de «doce foi engano», para, assim, «de alegria e prazer morrer ufano».
E disse solenemente: - «Vou dedicar-me à leitura de Saramago que conheço mal, como escritor!»
A noite está aí, já densa e longa. Ofereço-vo-la: majestática e perturbadora. «Enfermeira antiquíssima e serena», para que trate e cure todas as insónias e angústias de que padeceis.
É a hora da verdade. Do absoluto. De olhar para dentro. De nos olharmos, lúcidos e senhores dos nossos destinos, nos breves minutos deste tempo-fronteira e tampão, daquele que o espelho nos esconde. Há que cultivá-lo e fruí-lo, sem o mínimo desperdício ou concessão ao supérfluo. O encontro com o silêncio corre voraz. Fora dele, sinto que o presente não existe, ocupados que estamos a olhar para o passado, para planear o que se segue daqui a um instante, ou no futuro remoto.


Até um dia ou até mais ver!

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

De Hércules à Pequena Sereia. Poema pós homérico.

De Hércules à Pequena Sereia. Poema pós homérico.
Sempre à procura da Ítaca. Da minha Ítaca; que também será vossa, se navegardes os mesmos caminhos venosos da serenidade sentida e partilhada. A cada um a sua Ítaca. Caminhos de medo na aresta do presente futuro. O fio da navalha, aqui transfigurado num simples madeiro, produto de algum espúrio naufrágio. Náufrago e esperança vestindo a mesma cumplicidade, unidos ao sabor dos elementos, à procura da Ítaca. À tona. Aerobicamente Com todos os receptores dérmicos atentos, informativos, impermeáveis à mistificação. Prouvera ao Céu que à condição humana fosse recuperado o estatuto de anfíbio, a fazer jus à teoria da Senhora Elaine Morgan: a nossa origem reporta-se ao estado aquático. Talvez a premonição de Tales de Mileto. E lá no fundo dos mares, onde vive o velho Proteu; aproveitar tudo o que de empolgante, fantástico, maravilhoso, tranquilo, existe nessas profundezas oceânicas! Ali a meio do Atlântico, onde alguns querem encontrar a perdida Atlântida, na vizinhança dos Açores, pela proximidade, a cordilheira que se aquece e aquece, e deslumbra pela majestosidade singular. A água é o símbolo da Vida. Suporta-a e protege-a. Lava os excessos da alma, do corpo e da natureza. Purifica-nos em purgas. Leva-nos a viajar. Mas também nos julga; levando-nos a escorregar ou a meter o pé… na poça. O subaquático é surpreendente, mágico, maravilhoso até narcótico. Mas é inacessível, por enquanto, pelo menos aos de vulgar condição. Por isso a condição humana é condicionada e condicionante. Os monstros desapareceram. Os seres sobrenaturais desapareceram. Os deuses desapareceram. As fábulas, as fantasias, os fantasmas já não assustam, não incomodam, e não prendem a atenção. Abunda o virtual. As fulgurações vão perdendo o brilho. A mitologia saiu do imaginário. Os números ganharam. Mesmo os Arquétipos são só já meros e curiosos referenciais históricos. Tudo se resume à cibertecnologia; ao mundo das “pall station”. Por isso o grande desafio, o tudo ou nada, “make or brake”, o último desafio é viajar, é descobrir o centro do vulcão. É a terapia génica. Mas, para mim! Para mim a Ítaca! Para alguns “ma blast”; para outros “iokáli”; para outros, ainda, o esconderijo sagrado; a fonte das virtudes, o elixir da longa vida, a pedra filosofal. Para mim, a Ítaca. É uma voz que me toca. Nem sempre sei donde vem, se do remanso de um rio, se da calmaria de um lago, se da inspiração do mar, se da transcendência do cosmos, se da doçura dum sorriso, se da carícia da aragem, se do aroma dos espaços verdes, se do todo fragrante da natureza, se dum vinho retemperante, se do calor da amizade, se da felicidade sentida. Sei, isso sim, que sempre que a oportunidade me oferece a imagem da Ítaca, apaixono-me de imediato. Inevitavelmente Naturalmente. Visceralmente. Irresistivelmente. Acicata-me a militância poética. Dias e dias em estado narcótico, guardo-a no subconsciente. Noites e noites de intenso labor onírico.
Ontem a Ítaca estava lá. Esteve lá. Ouvi, também, a sua voz ecoar, sonora e firme, dominando o murmúrio do mar!
Ao tempo esbarrei com ela, de manhã, à tarde, à noite, ao dobrar da esquina.
Corri a apanhá-la na última estação da tarde.
Faziam-se anunciar os dias míopes do inverno, vestidos de um sol de riso magoado.
Restava pouco tempo de luz crepuscular para que o grande braseiro cumprisse o ritual e circadiano mergulho no horizonte distante.
Lá, onde já não tem lugar o branco marulhar da ressaca das águas oceânicas, e se define uma linha onde se distinguem silhuetas de navios que deixam escapar pequenas nuvens de fumo que formam figuras de corações engrinaldados.
De lá partiu Ulisses em jangada miserável, qual sombra daquele belo barco à vela, que dez anos o levara à conquista de Tróia. Que uma ânfora guarda, ciosa, em recordação testemunhal.
De lá partiu no derradeiro alvorecer, de regresso, rumo à Ítaca.
Iria abraçar de novo Penélope, que no gineceu se envolvia por um murmúrio de ais contidos e de desejos de amor por Ulisses, sem se deixar esmorecer, dando-se a sublimar um arrastado sofrer e penoso cansaço. Um sentir gozado, que só os femininos e delicados corações, quando querem, o conseguem.
Lá vi o redondo lumaréu afundar-se em lento e pungente adeus, acenando com gesto provocador e insinuante as paixões da noite, que a lua irá incendiar.
Hércules, o farol, cumpria a sua infatigável e oportuna missão de assegurar em rodopio cadenciado o rosto da noite. Na sua acção precisa e humanitária piscava com frequência regular e exacta aquele olhito cintilante de cristal de neve, despertando atenção a todo aquele que lhe estivesse ao alcance
Queria vê-la e saboreá-la por mais tempo, até ao limiar da imagem vaga. No limiar do etéreo e do distante.
Queria que efémera, evanescente e ligeira se transformasse em coisa de constância e substância.
Fernando ajuda-me! Empresta-me por breves instantes a tua “Ode Marítima”, para que este paquete leve um rumo ponteiro. Já que, desafio os deuses ou os exegetas da tua obra, seria esta navegação para ti mais que inebriante. Tu, que do Cais das Colunas olhaste esse rio, o mesmo que acolheu Ulisses, e cismaste indeterminadamente com viagens marítimas na imensidade imensa do mar imenso, com a alma ébria a transbordar de mar. Que, ouvias o assobio dos ventos nas gáveas altas, procurando mitigar a penosa violência de um pensamento filosófico e irrequieto, que te flagelava incessantemente os neurónios e te roía as entranhas com angústias. Aquietado, só, pelo deslizar sereno e elegante de um qualquer paquete, que o êxtase te levava à confissão:”...um navio será sempre belo, só porque é um navio”. Obrigado Fernando. Até sempre!
Naquela estadia, e nesta estadia, como venho segredando, senti a minha nau levar-me à Ítaca. Não sei se alguém mais a sentiu ou a tocou. A minha condição de forasteiro tornara-me mais perspicaz, mais sensível e desperto à descoberta da sua presença. Contrastando vivamente com quem já lá chegou, ou de lá nunca saiu. Tanta paixão, eterna paixão, renovada paixão. Tantas paixões, repetidas paixões, todas elas paixões. Mesmo assim poucas, mas verdadeiras paixões. Sentimento que me esforço por não banalizar, hipotecar ou passar procuração a um deus menor. Reclamo-lhe um Deus maior, único, absoluto.
Resta-me o regresso à Ítaca. É Ela o meu mito, a minha fé, o meu destino, o meu referencial. O símbolo, o racional. É tudo. É a Ítaca. A minha Ítaca. Está lá. A Atlântida não está. É ficção. “Descobrem-se Atlântidas no fundo do prato enquanto servimos a sopa de mãos erguidas aos deuses caducos”. Só a Ítaca existe. De lá parti à aventura. Sem destino. Sem o destino. É à Ítaca que quero regressar. Talvez náufrago, talvez sozinho, talvez indigente, talvez debilitado, mas chegarei à Ítaca. Um dia chegarei à minha Ítaca! Chegarei, algum dia, à Ítaca?

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Tempo de castanhas

Larry King, entrincheirado nos seus óculos “sextavados”, esticava os suspensórios e fazia peito, comentando em Galego, recentemente assimilado, ao seu interlocutor Camilo Cela, este, sim, galego:
- Daste conta que tudo isto cambiou, mozo? Ao que Cela respondeu:
- Desde o inbento da Roda, munta cousa cambiou, mas hai algûas cousas que non. Mas tudo bai ibluindo, tudo bai ibluindo!

«No dia de São Martinho, lume, castanhas e vinho.»
O mês de Novembro tem, como as restantes onze divisões do Calendário Gregoriano, os seus encantos, as suas especificidades, os seus rituais, as suas lembranças: as castanhas, o São Martinho, a marcha para o 1º de Dezembro. O tempo, como a vida, não para, ainda que se renove a cada ciclo. É neste andar em frente que as gerações e os hábitos vão criando pontos de referência: ora de progresso, ora de retrocesso, sem que, todavia, algo fique como dantes.
Por aqui e por ali, encontramos gerações em conflito…sempre na senda da reedição da insanável e falsa querela dos «antigos» e dos «modernos».
Coisas tão simples e tão naturais, tantas vezes tratadas com escárnio e mal dizer, ao invés de encaradas com toda a singeleza, sem apupos nem tabus, até porque o proibido desafia os fornicoques.
E, aos «provectos», vão ficando para trás alguns prazeres e alguns hábitos, que, por razões de trajectória racional, prescreveram, ou por essas vias vão, a caminho de, em breve, lhes ser outorgado o estatuto de peças de museu. Outros comportamentos serão digeridos na voragem do tempo, ou postos ao jeito de serem cobertos pela poeira que nele paira.
Nesta onda de arrumação, é incontornável o encontro com o intemporal, com o risível, com o catártico, com o fazedor de lágrimas de alegria, a fio, o flato: Fautor do bom humor, às carradas, que faz chorar as pedras da calçada e ressuscita mortos de riso; e os vivos, de olhos esbugalhados e papudos que nem de chamorro, rendidos incondicionalmente à hilaridade, até dizer: «basta, que me matam...de riso!»
Pum! O grande pedagogo de "maus fígados"; o bálsamo das alegrias tristes. Solta o tigre, Artur!...
Peido! O instrumento de todas as afinações e todos os timbres; o som para todos os gostos (e alguns desgostos, sempre e quando esteja patente a bipolaridade Norte-Sul, ou haja elementos afectos a tribos diferentes, nomeadamente: Gregos-Troianos; Gauleses-Romanos, Israelitas-Palestinianos, etc!).
Traque! "Virtuosi" e acrobata, que domina prodigiosamente todas as escalas.
Bufa! A grande animadora das noites, mais ou menos opíparas, mais ou menos a seco.
A farpa na temática oportuna, iconoclasta: ponto final na conversa.
O rater que marca presença, não obstante meteórica, que deixa selos e rastos indeléveis de alegria -..."para outros tristezas são: o carteiro não tem culpa"...-.
Estrelote, o grande companheiro de viagens.
Um deixar ir, um apelo e uma expressão à interioridade, cantada com o coração... de sonoridade não brilhante, não dolente; por vezes estridente; um cântico da verdade e do sentimento; capaz de chamar a atenção, ainda que de sonoridade pobre, indefinida, de mensagem oboé, ou de instrumento de palheta dupla, fagote ou tuba, para que a mensagem passe (saia...). O facto de se apelar à necessidade de afinação e moderação na afinação daquele instrumento (oboé) compreende-se, pois se trata de um instrumento que aflora "as soleiras da melodia e da música, ainda que de uma forma hesitante e elementar".
Petardo, a balada para todo o cruzeiro. Desde Atenas, em arrogante diálogo com Aristóteles em plena Acrópole, até às Américas, onde os aprendizes de Lucky Luke se rendiam contemplativos, ao fumo que se esgueirava displicentemente do cano do revólver, exultando com espanto, em uníssono de jogral: «Beans!»
Trombeta de entoação em modo Lídio ou Jónio, causadora de alguma preocupação, no próprio e no meio envolvente, mas prazenteira.
Peidão – como afirma o nosso amigo João radicado no Brasil -, mais que quadro de honra, é flato que subiu ao pódio!...

Ouçam, ainda não é tempo de tapar o nariz e remexer o pote: tempo sim para algumas referências e contribuições culturais, em muito casos, tributos à história e à arte, pelo menos pelos vultos que dão rosto à expressão corporal e fisiológica.
Quem cortou o queijo? – Uma história cultural do peido, que o livro de Jim Dawson, Ten Speed Press, 1999, nos presenteia e que vale a pena recomendar a todo o praticante e a todo o ignorante, ou quem procure actualizações ou mestrado no estado da arte.
A Europa, como que em devoção à sua história turbulenta, foi-lhe palco de inúmeras exibições.
Por cá, Jorge Nuno, protege-se com velas (que acende em alguns eventos) e requintado incenso para modificar e suavizar o som e ambiente pós prandial: um toque de mestre.
O "coronel", por um triz que não abatia, sem dó nem piedade, o pobre cão que se acoitava debaixo da mesa enquanto o ilustre castrense se permitia, ao compasso de opulento jantar, a convite do sargento beneficiário de algumas graças, libertar frequentes e sonoras ventosidades, compaginadas com a qualidade e o bem-estar daquele momento de convívio.
Lastimo, consciente de que nem tudo são rosas, que aos praticantes Anglo-saxões, que são os maiores «Petómanos» – leia-se «peidões» - do francês «pethomme» - à superfície do nosso planeta, seguidos dos ianquis, não se lhes tenha sido concedida a oportunidade nobiliárquica de "Sir". «Cá se fazem, cá se cagam!» - em usufruto do benefício da circunstância de o flato não constituir crime que esteja tipificado em qualquer dos Ordenamentos Jurídicos do Mundo Civilizado, conhecidos. Convenhamos que aqui, como infelizmente em qualquer sociedade, também há riso cínico e atmosfera de podridão; enfim se a carne não é boa não podemos esperar milagres que da alma venham.
E se houver combate, que seja de luva branca, com a arbitragem de Ramalho Ortigão! Como não se trata de duelo, aliás, proibido por lei, e bem, recorrerei ao simbolismo cáustico e vivo, com que o lembrado escritor fulminava, à época, a mentalidade dos contemporâneos... «Quem primeiro se queixa, é o que larga a ameixa!»

A Península Ibérica está, também, recheada de acontecimentos de flatulência, e escatologia, com vísceras ó tio ó tio, que, de tantos, ficar-lhe-á reservado espaço e tempo para uma próxima oportunidade. Tantos e tão talentosos «Pethommes» mereciam uma antologia condigna.
Fica, por fim, a referência breve a um mauzão horrível, que estraga esta fotografia: Hitler! Reza a história, que este condutor de camelos, conhecido por Adolfo, tinha problemas com as vísceras, por soltar gases que nem vulcões, que o incomodavam e irritavam até às campânulas da morte, bem como às pessoas em seu redor; nem a Gestapo aguentava muito tempo no bunker, onde entrava com os panhuelos ensopados de água de colónia para mitigar o sacrifício - testemunharam pessoas muito ligadas ao ditador. Só Eva suportava, ao que parece com prazer, a atmosfera bucólica do bunker. Supõe-se que tenham sido os iogurtes de testículos de touro, entre outros complexos vitamínicos que o Fhurer emborcava para apurar a sua (dele) raça, que lhe provocassem alegrias tristes, mesmo cólicas, no canal do palóio, tão fortes que dava berros que nem jumenta no cio!...
Nem mesmo o esconjuro "Vade retro Satanás prás pedras cagadeiras!", do Padre Fontes, e a queimada redentora de noite de bruxas seriam capazes de aplacar a ira das entranhas do afilhado da Krupps, elevando o salmo: ..."Sapos e bruxas, mouchos e crujas, demonhos, trasgos e dianhos, spíritos das eneboadas beigas... ". Casa de Satanás e Belzebu, fogo dos cadáveres ardentes. Corpos mutilados de indescentes, Peidos de cus infernais. Bramido do mar bravo"...

O que lá vai, lá vai!...

E há sempre alguém que pergunta: e o "bean" de Fafe?, e o "bean" de Madrid?..da Póvoa de Varzim?..., da Acrópole?..., de Verin?..., do Liceu?..., do Coliseu?..., do teatro?..., do cinema?..., do matadouro, do carocha do Lacerda, do...etc, etc, etc...
Prometo dar-vos um exemplar... de obra acabada.
E bom; quem segue, segue; quem está, está!
Afinal de que tratamos?! Tão só render homenagem a Dali, o Salvador!
"Pet'homme" assumido apesar de, injustamente, ser só conhecido na pintura onde chegou à categoria de “bomba”, será provavelmente o maior vulto, pós Renascença, no conhecimento e divulgação de tal fenómeno.
Possuidor de uma vasta e invejável biblioteca do foro, dedicou-se com toda a honestidade, isenção, respeito, lealdade e entusiasmo à "Pet'ologie". Tratou a flatulência por tu, sem tabus, sem escárnio e maldizer, sem ódio, sem ostracismo: como deve de ser. É pois, da mais elementar justiça, para além de tão alto galardão, estar entre os mais distintos da confraria, pela entrega apaixonada e materialmente desinteressada, a tão social evento.
A sua reputação chegou, e repousa hoje no museu em Palermo, criado expressamente para albergar todo o espólio e história do ensino de bem utilizar a técnica flatológica em sociedade. Aí tem guarida - como merecida recompensa - quem, tanto e tão alto deu...o seu melhor, contribuindo com pompa e circunstancia para o estado da arte.
E aqui também cabe perguntar: aquele (a) que nunca se deixou ir, que atire a primeira pedra!

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Vade in Santos

Feira dos Santos
A Feira dos Santos, em Chaves, pode considerar-se um ritual de mercado e lazer que sobrevive e recusa perder-se no esquecimento e ceder à usurpação toda poderosa dos barraqueiros latifundiários É, a Feira, cunho indelével de toda a árvore genealógica que enraíza na Cidade Linda a quem “nós queremos tanto”, e Vespasiano terá chamado “Aquae Flaviae”.
Foi, e rogamos que seja, o mercado de referência do Concelho, que aguça o apetite e a curiosidade aos concelhos vizinhos. Ano após ano, tem sido a feira mais importante.
O casamento de Feira com Santos, não se sabe se foi por amor ou de conveniência. Certamente vários factores terão contribuído para tal certame. Não vou meter-me por essas veredas, que deixo para um historiador dedicado a estas investigações. A descrição da Feira dos Santos encontra-se profusamente documentada em miríades de artigos, espalhados pelos quatro cantos do mundo.
Não me livro, contudo, da tentação de testemunhar que nessa altura do ano o grosso dos trabalhos agrícolas está (ou estava) feito, incluindo a apanha da castanha “gota” (que bilhó!...), ficando apenas para Dezembro a da azeitona, uma e outra, de execução mais suave ao arcabouço dos que viviam e vivem ainda da jeira.
Os habitantes das aldeias preparam-se (ou preparavam-se), pois, para o duro Inverno que se aproxima (ou aproximava), longo e penoso. Alguma razão estará subjacente ao dito: nove meses de inverno e três de inferno.
Não menos importante é (ou era) o facto de alguns dos rendimentos dos trabalhos agrícolas estarem já nos bolsos, a enchumaçar as calças ou colete, (no travesseiro, cofre ou mesmo empedrados): nunca na Banca.
Outros proventos esperam-se (esperavam-se) das trocas e vendas de gado e lã, as mais representativas.
Chegava, também, a oportunidade de renovar a roupa de vestir e prover o corpo, de alguns agasalhos: samarra, capote, lenço tabaqueiro, botas e socos; e o lar, de provisões e utensílios domésticos esbotenados, ou em falta, bem como acompanhar alguma modernice, entenda-se esta, também, como a evolução previsível das “coisas”.
E, já agora, para os graúdos, relaxar…um pouco de regabofe e de diversão… após tantos e penosos trabalhos ao longo do ano, mitigados apenas por uma ou outra romaria, aqui e ali, no pico do verão. Para os miúdos, um soltar de amarras, com uma lufada de pândega e diversão… um aliviar de tensões no carrancudo início das aulas.
"Antes o poço da morte que tal sorte"! - Aí está ele, o Poço da Morte!!! - bem como uma ampla panóplia de apelativos divertimentos, avidamente procurados por almas sedentas de folguedo e agitação, fruto do acicate da adrenalina que esta circunstancia põe em circulação.

Mergulhado nesta aguarela humana, queimava sua existência o autor da deliciosa picardia que aqui tem lembrança - Saramita, de alcunha, Mesquita de registo – protagonista ilustre de outras façanhas já, neste espaço, relatadas. Personagem evocado pelos seus dotes imaginativos, mais dado ao conhecimento autodidacta e ao raciocínio rápido, que afoito para o enriquecimento material; considerado até um agente desastroso neste ramal.
Filho de um deus-menor, Mesquita terá pertencido ao clã dos pequenos heróis que recorria reiteradamente à imaginação para aguentar a existência, desafiando recorrentemente o "statu quo". Quase sempre aprendendo por ensaios e erros, quase sempre granjeando saber de “experiência feito” e exaltando, com frequência, a bipolaridade existencial com elevada emoção, pelo que fez fortuna de ódios e paixões: traste ou vilão para uns, herói ou ídolo para outros.

Aconteceu, por altura da Feira dos Santos. Saramita acordou para o negócio, empurrado, talvez, por qualquer pesadelo financeiro que o tenha assolado durante a noite. Um aliciante plano para mitigar, quiçá, a falência em curso, afigurava-se-lhe fiável e eficaz ao seu espírito divertido, ensaísta e inovador. Com a ideia a ecoar repercutidamente no cérebro, procurou Castelo, o amigo e conselheiro indefectível, a quem explicou o plano que tinha em mente bem como os respectivos fundamentos. A colaboração de Castelo era imprescindível pela relação de extrema confiança existente entre ambos, que fazia deles amigos do peito, carne com carne.
Consistia o plano negocial na criação de uma tenda de barraca, orientada em determinado sentido espacial. Uma porta de entrada, outra de saída. O interior vazio e escuro, pelo que também não havia espelhos ou outras "ratoeiras". Nem sequer ruídos, ou risos, a imitar fosse o que fosse; isto é, nem terror de cagar calças, nem riso de as molhar.
Em suma, um pequeno percurso em ziguezague, que aumentava a expectativa e a ilusão temporal e espacial do local.
O visitante entrava assim por uma porta e saía, mais à frente, por outra.
Quase me esquecia do mais importante, pelo menos do ponto de vista financeiro: a existência de uma pequena bilheteira contígua à tenda onde se acomodaria o amigo de Saramita, dedicado à venda de bilhetes que permitiriam ao interessado visitante o prazer da aventura por um túnel desconhecido e supostamente cheio de surpresas. A esta atmosfera juntar-se-ia uma seta de néon, pouco sofisticada, a incentivar a entrada.
Mesquita terá dito então ao amigo: “Castelo, este ano vamo-nos encher dele!... Vais ver! Os Bertoldos das aldeias vão cair como moscas. Faz as contas, a um pataco cada um, Feira dos Santos, hã!”.
Castelo estava habituado às tentadoras materializações das fantasias de Saramita, homem de sete ofícios e outras tantas atitudes empresariais, pelo que prenunciou, “é tiro e queda”! Tinha, Castelo, no entanto, algumas dúvidas. Não estivesse ele na qualidade de colaborador e co-responsável directo daquela supostamente lucrativa diversão, perguntou: “Óh Mesquita, como é que tu, e eu..., nos vamos safar de umas boas lombeiradas logo que os primeiros visitantes, se derem conta de que foram completamente burlados?”.
“Aí é que tu te enganas”, disse Saramita.
“Não estás a ver bem a situação”.
“Como assim?”, perguntou Castelo.
“Simples”, - retorquiu Mesquita,
“Imagina só! … os papalvos entram por uma porta, dão umas voltas lá dentro sem ver nada, saem pela outra porta e estão cá fora, na Feira... Reacção imediata: filhos da p..., que bem me levaram estes c...os! Claro que até sentem frio na espinha, “engaranhados” até ao arrepio. Mais, a reacção não é só de frustração e de revolta, mas pior: é também uma vontade quase irreprimível de ajuste de contas e de limpar a afronta, ou o sebo! Mas não o vão fazer! Porquê? Porque maior enxovalho adviria se dessem a conhecer o papel de tanso a que esse conto do vigário os tinha levado. Então, vão chamar e sugerir aos amigos ou "outros" que entrem e sintam na pele o mesmo logro. E o negócio continua. “Está bem”, - anuiu Castelo - "bota prà blusa!. "Com o mal dos outros posso eu bem!"

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Poema Sineiro

Poema Sineiro

Pergunta: alto está, alto mora. Todos o vêm e ninguém o adora. O que é?
Resposta: o sino!

Esfrego os olhos, ensonados e mal abertos pelo omnipresente despertador, de ruído execrável, cúmplice do despótico relógio de ponto, traidor e carrasco do lusitano galo, das medievais campaínhas de bois e cabras, da musicalidade do regresso ao redil, do toque das Santíssimas Trindades.
Ah! Os sinos! O sino da aldeia. Das aldeias. Das festas. Das procissões. Dos baptizados. Das novenas. Da Páscoa. Das núpcias (que agora se ficam pelos foguetes: a maior foguetório, maior a abastança!).
Também tem maldizentes e ciumentos chocalhos! "Burro como um sino!?"
Corruptelas satíricas ou mimos paternalistas: sino versus Alcino!
O toque a finados. O sino podia evocar o toque a rebate para avisar a aldeia de que algo importante ia ocorrer ou em vias disso. Na aldeia sabia-se se havia fogo pelo toque do sino. Dlong! dlin! dling! Dlong!
O Coelho, sacristão, que tão bem tocava o sino, fazendo-o repicar em dias festivos, com a mesma mestria com que o aclamava pregoeiro enfático da Missa.
Sino de presença obrigatória em actos solenes que tivessem um templo por testemunha.
“Por quem os sinos dobram (!?)”.
O tilintar incessante dos sinos das Renas em período de Natal (hoje dos supermercados com arranque temporão a cada Novembro).
O som nostálgico da meninice.
Os sinos tocavam três vezes para o início do trabalho da apanha do cacau em S. Tomé e Príncipe.
Sinos no final da abertura 1812, de Tchekovsky.
O sineiro da armada. O sino, único com estatuto de corda, a bordo das embarcações.
O carrilhão de Mafra que organiza os sinos em assembleia. A tonalidade menor que lhe dá aquela sonoridade doce.
Os sinos da cena da coroação de Boris, de Boris Gudunov de Mussorsky;
Os sinos que inspiraram a sexta gravação que Mário, o carteiro - de Pablo Neruda -, fez no campanário da Igreja local...!
Sinos dolentes que dobram. Dobram na sinfonia fantástica de Berlioz.
Os sinos que enriquecem o coro infantil no 5º andamento da terceira sinfonia de Malher: bimm, bamm, bimm, bamm...
1494: a data daquele sino enorme transportado para terra, a custo, em carro puxado por junta de bois, e um bom punhado de homens, aquando da segunda viagem de Colombo “às Índias Ocidentais”!
Sinos na Sinfonia do Requiem (da guerra) de Benjamin Britten.
O Sino da Torre da Paz em Benfeita, aldeia do concelho de Arganil tem a tradição de comemorar, o fim da II Guerra Mundial, tocando 1620 badaladas.
“Tocam os sinos da nossa aldeia, vai passar a procissão”, quem não se lembra da talentosa voz que o Villaret emprestou a este poema?
Sinos no final da segunda sinfonia de Gustav Malher.
Outros tantos compositores que mergulharam nas campânulas destes idiofones, quais sibilas composicionais, e nelas colheram engenho e arte para belas obras.
Sinos que anunciavam as guerras e que eram fundidos para canhão.
De plumitivo atento se lê: Os de Arcadiços queixam-se ainda de que “os sinos da sua capela lhes foram roubados para Travancas e até hoje ainda não voltaram”...
Rua do sino em aldeia de Barroso.
«Os sinos de Maçaínhas cantavam assim: tem lêndeas, tem lêndeas, e logo os da Corujeira diziam: se tem tira-lhas, se tem tira-lhas. Os dos Trinta perguntavam: com quê? Com quê?, e os de Vale de Estrela diziam, com a sua voz grave, com o martelão, com o martelão!».
“Um mestre é como um sino. Se alguém der apenas um leve toque, tudo que escutará é uma leve vibração. Mas se a mesma pessoa sacudir com vontade terá um ressonar bem alto, que vai abalar até o fundo da sua alma. Perguntem com coragem, e só parem quando obtiverem a resposta que procuram”.

Agora, num tempo em que o relógio/cronómetro tatua a condição humana e que está presente em quase todas as ferramentas de trabalho, o sino do campanário deixou de convidar à reflexão introspectiva, à exortação ao silêncio, à vida em comunhão com o outro e com Deus. Não mais se ouvirá a trompa do anjo anunciador do sagrado, já que foi trocada por ruídos electrificados e ampliados por campânulas, na missão pura e simples de contar o tempo, repetida à exaustão, ridícula e gratuita, em registo de feira, em franca concorrência profana com o pregoeiro do peixe, sem qualquer sentido ou apelo às leis da sociabilidade: sem memorialística. Sinais do tempo. Poluição sonora numa réstia de tempo e espaço em que o verdadeiro relógio é o sol e o sino o seu núncio.

Ó Sino da minha Aldeia
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem som de repetida.
Por mais que tanjas perto
Quando passo, passo errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Fernando Pessoa

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Cala o bico

Cala o bico
Ora cá está um bom assunto em que a dicotomia, a dualidade ou a teoria dos contrários não têm cabimento, exemplifico: não há vinhos maus por oposição aos bons; há vinhos bons e menos bons! Tentando burilar o conceito: res bona, bene tibii!
E, para ajudar quem só veja trevas neste estilo narrativo, direi que é mais um olhar relâmpago e romântico sobre pequenos nadas da vida, que resgata ao esquecimento personagens castiças, que à sua época tiveram algum reconhecimento ou mesmo notoriedade, mas que, com a passagem do tempo, se afogaram num mar de coisas novas e diferentes, a que chamam esquecimento, ficando os seus nomes e gestas guardados única e dispersamente na memória de familiares ou amigos e respectivos descendentes, e no eco de dizeres.
Adiante:
As estórias de amantes de vinho, de que se destacam os bebericas, e a história da cultura do vinho, bem como a ciência enológica, têm sido feitas de avanços e recuos, ensaios e erros, e não só por "documentos, edifícios e objectos".
Não vai aqui o soldado afrontar o general e falar de Homero, da acção dos Romanos ou dos Tartessos, ou dos Franceses, do (enguiçado) Barão de Forester e/ou da D. Antónia, do País das uvas, ou outros que difundiram o culto e a cultura do vinho.
Poderiamos evocar, João Torrão, de Miranda (do Douro), quem, naquele tempo, teve as carícias e o direito a rei do mundo outorgados por seu avô. Eu também usufruí dessas prerrogativas, a pleno peito. O pai de João Torrão foi um micro empresário de taberna na mesma localidade, homem comedido, organizado, de poucas falas: serviço é serviço, conhaque é conhaque. Também o avô de João Torrão, procurou viver o seu dia-a-dia com alegria, de preferência sem altos nem baixos, nem sobressaltos. Era amigo de Avelino do Palancar (Quintarola junto a Miranda do Douro) que vendeu a vinha para comparar o lagar, tanto gostava dele; amizade que cultivou com prazer e dedicação quase doentios, tal a sua obsessão pelo Amigo.
Poderíamos ficar por aqui, presos à história da “palhinha de centeio”. Mas iremos mais longe, antes que nos calem o bico.

Recordemos rapidamente as seguintes designações atribuidas às entidades que historicamente têm vindo a tutelar o sector:

I - A “Junta Nacional do Vinho, pois este organismo de coordenação económica conduziu o sector vitivinícola, durante décadas (1937-1986)” .

II - O “Instituto da Vinha e do Vinho foi criado pelo Decreto Lei Nº 304/86 de 22 de Setembro, sucedeu à Junta Nacional do Vinho e a sua criação teve como principal objectivo adequar a organização corporativa ainda existente aos princípios e regras próprias da organização comum do mercado (OCM). Foi objecto de uma primeira alteração orgânica em 1993, tendo sido posteriormente reestruturado pelo Decreto-Lei nº 99/97 de 26 de Abril.”
III - A “Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica (ASAE) “http://www.asae.pt/”, foi criada por Decreto-Lei nº 237/2005, de 30 de Dezembro.” Todavia, a sua génese remonta a anos que não sei identificar, pormenor que não será relevante para este relato. Mais importante será que, para impedir que o vinho de sabugueiro, de martelo, ou produtor directo entrassem no mercado, fora produzida legislação que define o estatuto do vinho.
Se quisessemos, ainda, continuar a incursão pela história desta temática, não seria aqui descabido falar da filoxera, da lei seca, do Alcapone, de gangsters, que fazem sempre dum bom bouquet para tudo que seja notícia, ou argumento cinematográfico, e da lei do isqueiro, com o seu mote humorístico, ou, até, da lei das rolhas, de má memória. Aqui e ali sempre se achariam pontos de conexão.
Fiquemo-nos pelo produto nacional.
À data dos factos a que esta narrativa se reporta, produzia-se e consumia-se, profusamente, o chamado morangueiro, em prejuízo das restantes castas, mais caras e menos abundantes, nomeadamente, o Vinho dos Mortos, em cuja região produtora se achou a fonte para este relato.
É nessa altura que os fiscais começam a rondar as casas de pasto e as tradicionais tabernas à procura e identificação de quem vendia e consumia tal bebida.
Sempre houve prevaricadores neste mundo!
Sabendo disso, Quintino, empresário de taberna em Boticas - conhecido pela invenção do bordão «Vais e vens sempre a assobiar», fórmula expedita para controlar o filho, nas suas tentações de deitar os beiços à infusa, ou à torneira, de cada vez que ia à pipa - procura a ajuda e o parecer, do prócer juiz da Comarca de Chaves, Dr. Silvino Pires, conhecido por meritíssimo Dr. Lavradas - chancela toponímica, pois nascera na Aldeia de Lavradas, concelho de Boticas - figura a quem eram, ainda, atribuídas outras qualidades como: a astúcia, a bonomia, a graça e a fraternidade.
O meritíssimo aguçou o raciocínio e a douta e experiente argumentação, recordando-se de uma sentença que havia sido lavrada em boa época por déspota pouco escrupuloso, mas que encaixava aqui, com pertinência:
- "Escreva imediatamente abaixo da minha assinatura – ordenava o Príncipe a Rossi:
«Havendo-se a Duquesa Sanseverina lançado de novo aos pés de Sua Alteza, o príncipe permitiu que todas as quintas feiras o culpado tenha…» Assine isso – ordenou o príncipe. – E sobretudo não abra o bico calado, ouça o que ouvir anunciar na vila.”

Graças à informação atempada de Quintino, Dr. Silvino Pires, também ele alistado no batalhão de tintoreiros, ainda que fraco consumidor do produtor directo ou americano, avisou os taberneiros possuidores "do tal" para não satisfazerem os clientes com “tal” pedido, isto é: sempre que lhe pedissem um copo, ou mais (...), de morangueiro, dissessem que não tinham “tal”.
Só que se levantava uma questão bem pertinente, diga-se: “e que fazemos ao vinho? Isso vai ser um enorme prejuízo, até porque é praticamente o único stock que temos, para aviar e aliviar a clientela”.
O Juiz, fino como um alho, se bem pensou melhor disse: "olhai , ides chamar-lhe cala o bico”, como, aliás, tem, muito providencialmente, acontecido.
“Como assim”, perguntavam os taberneiros?:
“Se alguém entrar e perguntar:
- «Tem morangueiro?», dizem:
- «Desse, não! Só cala o bico!»
- «Ahn?»
- «Sim só tenho cala o bico! Deseja?»
- «Bom, serve!» É o que os bebedores pedirão, na ânsia de encanar um calistro”.

Agradeceram o aviso e, daí para a frente, sempre que alguém, em Boticas, entrava com secura e pedia do “tal”…! o taberneiro respondia em voz grave: “cala o bico e que fazenda!”, e aviava-os desse.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Pensamentos soltos, bastantes plágios e... Inherit the wind!

Pensamentos soltos, bastantes plágios e... Inherit the wind!

Desde que JS e ML se embrenham e acorrentam mais e mais na floresta da sétima arte, acorrem-me ideias soltas: ficção, realidade, ciência, polémica, etc., avulso, ou concatenadas...
Esta é uma delas, até de madrugada!
A 25 de Setembro de 1866, nascia o brilhante geneticista estadunidense Thomas Hunt Morgan, cujos notáveis trabalhos sobre a genética da mosca do vinagre, “Drosophila sp”, lhe valeram o Prémio Nobel da Medicina em 1933. Morgan reparou que o padrão de hereditariedade da cor dos olhos acompanhava o do cromossoma X. Sugeriu, então, que o gene da cor dos olhos estava ligado a este cromossoma X. As características de Mendel, que aprendemos no liceu estavam – praticamente – achadas. O mapa genético nascia tímido, mas pronto a crescer. Era o começo da sua elaboração.
Como se sabe o ácido desoxirribonucleico (ADN) é constituído fundamentalmente por quatro bases azotadas.
Diariamente, cada célula do corpo perde espontaneamente cerca de 10.000 bases e muitas células estão, nessa altura, em fase de divisão e, portanto, a copiar o seu ADN -replicação do ADN -. Em cada cópia existe a possibilidade de erro. E além destes erros espontâneos, o ADN está constantemente a ser agredido. Estima-se que 80 a 90 por cento de todos os cancros tenham origem em lesões produzidas por estas agressões ao ADN. Se estas, porque são frequentes, continuassem, as mutações aumentariam exponencialmente a probabilidade de se contrair tumores, não existindo mecanismos celulares capazes de corrigir os erros introduzidos. E, aqui, o optimismo é grande. E crescente.
Já lá vai meio século que o modelo da dupla hélice do ADN, enquanto transformava a linguagem vulgar em terminologia da aristocracia biológica pelo nascer da nova semântica de replicação, transcrição, tradução, expressão, entre muitos outros conceitos, conseguia fazer realidade o pensamento de Freeman Dyson em “Imagined words”: “a ciência é o meu território; mas a ciência-ficção é a paisagem dos meus sonhos”. Porque desses sonhos - reconstrução de velhos mitos - vividos há apenas umas quantas décadas, passou-se à realidade dos territórios da ciência e da técnica dos nossos dias.
O tema é por demais excitante para continuar um pouco mais na incursão pelo inebriante historial do ADN. A estrutura química do ADN em dupla hélice, descrita por James Watson e Francis Crick em 1953, laureados com o Prémio Nobel da Medicina em 1962, conduziu a magníficos resultados capitalizados pela actual bioengenharia, que tem como substrato os métodos do ADN-recombinante. A este propósito ou a talhe de foice, se preferirem, o “alteplase”, por exemplo, um agente trombolítico usado para “dissolver” trombos coronários em situações de enfarte agudo do miocárdio, além de fibrinolítico, é não antigénico, porque é sintetizado pelo ADN-recombinante, tecnologia que “mimetiza” o activador do plasminogénio tecidular normalmente segregado pelas células endoteliais humanas. Isto porque a bioengenharia é capaz de criar novas espécies vegetais e animais, e, inclusivamente quimeras de animais (animais compostos por células de duas ou mais proveniências genéticas diferentes) bem próximas das ficções antigas, isto é, da mitologia clássica, onde a quimera era um animal fabuloso, um misto de leão, serpente e cabra, ou do mito do Minotauro (um monstro que tinha corpo de homem e cabeça de touro). A bioengenharia permite modificar as propriedades e até a forma dos organismos com fins clínicos, agrícolas ou industriais. Digamos, é capaz de proporcionar a terapia génica, incluindo o repto das doenças multigénicas, a manipulação, a pedido, da esterilidade das sementes de plantas, a transferência de núcleos na qual se fundamentam as técnicas de clonagem (allo, Doly! Mééééé ). A vinculação de genes específicos ao padecimento de doenças – o macaco tetra - e a tentativa de aplicação de nova linguagem aos computadores - já não binária, mas apoiada na linguagem do ADN, com um alfabeto de quatro bases - aliadas à conjunção da informática com a genómica, irão gerar novos produtos com aplicações diversas nas áreas da biotecnologia e da medicina.

Relacionada, ainda, com esta questão científica, que preocupa a grande maioria dos viventes, está a senectude, que começa quando principiamos a morrer espontaneamente. Para um biólogo, por exemplo, a senectude implica a ausência ou falência na replicação do AND; a célula não se pode dividir e morre espontaneamente. Os sistemas de transcrição estão alterados, num contexto complexo que talvez seja consequência da biologia geral desta etapa. Neste processo de envelhecimento geral estão patentes uma regeneração lenta, uma transcrição, uma actividade e uma capacidade lentas da célula para produzir proteínas.
Todavia, possuímos enzimas de manutenção que continuamente detectam a ocorrência de defeitos, corrigindo-os. Os mecanismos de reparação e manutenção são espantosamente eficazes. Sabe-se que os genes são trechos do ADN que codificam proteínas específicas. E, apesar de no genoma humano existirem, repito, três mil milhões de pares de bases nos genes, as enzimas de manutenção e reparação apenas não conseguem corrigir falhas de emparelhamento de três bases, o que é algo de espantoso. São capazes de "cortar" o ADN e preencher os espaços incompletos com as bases correctas que faltavam, garantindo-se, assim, a fidelidade das cópias. Já no seu romance “T Zero”, Ítalo Calvino mostra-nos a função que cumpre esta base de dados arrecadada nos assombrosos microchips cromossómicos quando nos conta: “... Contar a minha história e a de Priscila quer dizer em primeiro lugar definir as relações que se estabelecem entre as minhas proteínas e as de Priscila, sejam tomadas separadamente ou no seu todo, dirigidas tanto as minhas como as dela por ácidos nucleicos dispostos em séries idênticas em cada uma das suas células e em cada uma das minhas”; excerto literário que bem poderia recopiar o argumento do chamado “dogma central” da biologia molecular, ao estabelecer que a informação contida no ordenamento dos três mil milhões de unidades químicas no ADN humano - base material dos cromossomas e, portanto, dos genes, suas porções funcionais - se expressa sob a forma de proteínas dotadas das mais variadas funções, tais como: a de catalisadores, de defesa e, até, a de suporte ao amor de Priscila.
O ”dogma central” da biologia molecular é uma presunção de Watson, que atribuía ao ADN, toda a responsabilidade e todo o protagonismo na formação de proteínas, isto é: o ADN faz o ARN produzir proteínas! Secundarizava, pois, o papel do ARN. Veio a descobrir-se, posteriormente, que os retrovírus punham em causa este “dogma”.
Numa representação simbólica em que o cenário fosse uma biblioteca de ADN, aos Cromossomas, a cada filamento de ADN e aos genes poderia fazer-se corresponder as estantes, um livro e os capítulos, respectivamente. Diferem, pois, nas suas dimensões, o que não os impede de repartirem o segredo das suas funções com o ordenamento das suas quatro únicas unidades: as quatro bases de nucleótidos com que se escreve o código genético (adenina-A, guanina-G, timinaT e citosina-C), que formam o seu alfabeto.
Sem formalismos, concedamos: orientar-se dentro da longa molécula de ADN humano à procura dos genes responsáveis por doenças hereditárias é tarefa extremamente complexa. É como visitar um país, melhor, um continente às cegas.
Mais: o gene p53 é aquele que nos últimos anos tem concitado maior atenção. O p53 é um regulador das perturbações da proliferação. Na presença de uma lesão do ADN, ocorre uma estimulação da proteína p53 que diz à célula que morra, ou sintetize mais p21 que, por sua vez, diz à célula que diferencie, ou pare o ciclo celular e a síntese de ADN. Quer dizer: ao promover a sequência da morte celular, isto é, ao obrigar a morrer as células que não consegue reparar - apoptose celular - impede uma proliferação não regulada do ADN.

Para reflexão: "os fumadores com cancro na cavidade oral têm mutação do p53, o mesmo não acontecendo com os não fumadores". Conhecem certamente o epílogo da história clínica do "Homem do Marlboro (...)!
O fumo do tabaco engravida a voz, isto é, torna-a mais grave (!...).
Pois bem. O p53 é o gene supressor tumoral mais mutado em todos os cancros humanos. Cerca de pelo menos 75% dos cancros humanos têm mutação da proteína p53 que desempenha um papel fulcral na homeostase celular porque reconhece as alterações ao nível do ADN.
Continuando, o projecto do genoma humano nunca esteve quieto, mas sim nervoso e pujante. Como o sonho, pula e avança. Já lá vai a célebre experiência com ervilhas, levada a cabo pelo monge austríaco JG Mendel, em 1865, que marca o princípio da genética:” Talvez haja mais alguma coisa do que parece nas ervilhas! Talvez elas contenham instruções ocultas que nem sempre revelam o que dizem; uma ervilha redonda poderia conter escondido em si própria a instrução para as rugas”. Mendel sugeriu que tanto o pólen como o óvulo eram portadores de uma partícula (hoje chamada gene) que continha o código da forma da ervilha ao reproduzir-se.
O virar deste milénio trouxe de bandeja aos caçadores de genes de doenças hereditárias humanas, a possibilidade de disporem oficialmente de um "mapa de estradas" bem sinalizado, com a totalidade dos cromossomas humanos. Contudo, mapear não significa descodificar, e, até conhecermos todas as interacções e implicações deste complexo e admirável mundo novo, “é vindima!...”
Existem muitos genes, e conhecê-los-emos todos. Estaremos, assim, por dentro de um gene a fazer a leitura da sequência do ADN, e, com isso, teremos a certeza do gene implicado na doença. Estamos, pois, cada vez mais perto das fontes da vida. A luta continua! A vida continua! Com ou sem genocracia, com ou sem abutres a afivelar a máscara para o negócio na saúde!...
Em jeito de flash de frescura, pode dizer-se que a era dos estudos de associação de genoma completo (genome-wide association studies [GWAS]) já aqui está, e no curto lapso de 5 anos o seu rendimento prolífico foi extraordinário Os GWAS serão provavelmente um marco da ciência no século XXI, tal como o foi o Projecto Genoma Humano no século XX. O desenho dos GWAS proporciona uma abordagem não enviesada para localizar nos mapas cromossómicos as variantes genéticas de risco frequentes.

As versões cinematográficas – e foram várias - a tratar o tema da evolução biológica e do criacionismo, têm aparecido progressivamente menos nos ecrãs de cinema. Talvez porque estejamos mais tolerantes, mais cordatos e mais francos e empáticos. Pena é, que as referidas versões não tenham sido substituídos por uma crescente discussão dos problemas ambientais e das alterações climatéricas que lhe estão inerentes.

Neste contexto, talvez por gostar muito do actor Spencer Tracy - lembro-me de O Velho e o Mar, entre muitos filmes em que participou -, “Inherit the Wind” é o título de um filme realizado em 1960 nos E.U., que tem por argumento o ditado: quem arruína a sua casa herdará o vento. Baseado num caso real ocorrido em 1925, conhecido por “Monkey Trial”, no qual um professor de ciências de Tennessee, John Scopes fora preso acusado do crime de ter exposto as teorias evolucionistas do Estado. Numa comunidade religiosa Americana, um professor de Ciências é preso por ensinar aos seus alunos a teoria da Evolução das Espécies proposta pelo naturalista Charles Darwin, contrariando uma das leis locais que não permite o ensino de disciplinas opostas ao Criacionismo. Daí, trava-se no tribunal, por meio de dois grandes advogados, interpretados por Spencer Tracy e Fredric March, um grande embate ideológico que envolve toda a comunidade local e seus princípios religiosos. Este filme, aquece a nossa opinião com diálogos pertinentes e perspicazes, e apesar de antigo, mostra-se ainda actual, quando, aqui e ali, vemos alguém no seu fervor religioso protagonizar episódios medievais e intolerantes, movido pelo fanatismo fundamentalista, mesmo com todo o avanço do pensamento tecnológico e a liberdade de expressão que vivemos hoje em dia. Durante o julgamento, que durou onze dias e foi o primeiro a ser transmitido por rádio, a defesa foi impedida pelo juiz de apresentar cientistas como testemunhas em favor da teoria da evolução.
Scopes solicitou deliberadamente a manutenção da prisão, para tentar provar que a lei era injusta. E o veredicto virou causa nacional. O famoso advogado Henry Drummond vai fazer a defesa de Scopes, agora com o nome de Bertram Cates; um político fundamentalista, Matthew Brady, tinha a cargo a parte acusatória. O defensor, protagonizado por Spencer Tracy, disse: “... O progresso nunca foi um tratado. Há que pagar por ele. Às vezes penso num homem por detrás de um espelho que nos diz: muito bem, pode você ter o telefone, mas deverá sacrificar a intimidade, o encanto da distância... Caro Senhor, pode você, conquistar o ar, mas os pássaros perderão a sua magia e as nuvens cheirarão a gasolina!”.

A gasolina cheira o recente desastre ambiental causado pela maré negra no Golfo do México, causado pela explosão da plataforma subaquática Deep Horizont. Mas pode, também, favorecer uma tomada maior de consciência sobre os perigos relacionados com a dependência do petróleo e que nos ajude a dar conta de que temos de deixar os combustíveis fósseis trocando-os pelas alternativas mais amigas do ambiente, bem como repensar a forma como exploramos os oceanos, como afirma Philippe Cousteau, neto do célebre explorador francês Jacques-Yves Cousteau.
Como rebusco de todo o anterior, é de esperar e prevenir que esses cromossomas, carregados de tanta e poderosa magia, que deslumbram todo aquele que tiver a felicidade, como T H Morgan com as moscas-das-frutas, de os surpreender na intimidade dos momentos da divisão celular, maravilha da natureza, nos desvendem e proporcionem mais e mais informação para a cura das doenças e bem-estar físico, e menos pivete a petróleo na bolsa de Nova Iorque, com vendas às empresas farmacêuticas por quantias astronómicas.

Sempre que a expressão audiatur et altera pars, que significa “ouça-se também a outra parte”, tiver eco, o contraditório e "associações sem fins lucrativos, independentes e sem qualquer vínculo político-partidário, que tenham como missão divulgar boas práticas e propor soluções inovadoras, através de contribuições interdisciplinares de mulheres e homens de bem, que acreditam que a liberdade cria espaço para a criatividade, o mérito e a responsabilidade", estaremos no bom caminho, e aptos para não julgar o livro pela capa!

Ponho ponto final parafraseando Freeman Dyson em “Infinito em todas as direcções”, Gradiva, 1990, quando escreve: “Deus não é omnisciente nem omnipotente. Aprende e cresce à medida que o universo se expande. Não pretendo compreender as subtilezas teológicas a que esta doutrina conduz se a analisar em pormenor. Considero-a meramente congenial e consistente com o senso comum científico. Não faço nenhuma distinção clara entre a mente e Deus. Deus é aquilo em que a mente se transforma quando esta passa para além da escala da nossa compreensão”.