sábado, 26 de setembro de 2009

Carta a Miguel Torga

Meu Caro Adolfo:

É da mais elementar cortesia e elegância começar por recordar o convívio em atmosfera cultural, tão profícuo, ocorrido aquando da sua última e já saudosa visita às Termas de Chaves.
Posto isto, tomo a liberdade de informar que referenciei a sua consulta de otorrinolaringologia aos pacientes de que, sumariamente, lhe havia falado no referido convívio em Aqua Flavia : os lusitanos, também conhecidos, paternalista e ternamente por Tugas.
Em detalhe, trata-se de um grupo de indivíduos maioritariamente caucasianos, de "sex ratio" equilibrado, sem aparente predominância numérica entre ambos, com alguma flutuação estatística pela recorrência frequente à imigração, com idades compreendidas entre os 4 e os 84 anos.
A idade aparente dos referidos indivíduos é sensivelmente sobreponível à idade real. Ostentam soberba no sotaque, que se vai diferenciando, como o que ocorre com a paisagem, quer se vá de Miranda do Douro a Vila Real de Santo António quer de Pitões das Júnias a Sagres, não esquecendo o Portugal Insular que gozam aqui de estatuto próprio. Pronúncia à parte, são senhores de discurso rápido mas esvaziado. Quanto à caracterização psicológica, a esmagadora maioria orienta o comportamento de forma idiossincrática e caracteriológica, onde expressões como: “é assim…, é como é…, ou cada um é como cada qual”, fazem escola. Revelam-se relativamente bem orientados no espaço, mas com deficiente orientação temporal. Expressam um “fenótipo” que exibe um indisfarçável efeito de classe, com acentuada desigualdade de género.
A salientar a elevada prevalência de factores de risco para doença coronária, entre outras enfermidades.
Ao Exame Objectivo revelam-se ciclotímicos, bipolares, dualistas e ambivalentes, sem estigmas aparentes de clã. Revelam uma sofreguidão pelo pequeno poder comparável à apetência do suíno pela haptoglobulina do sangue, homólogo e/ou heterólogo.
Um grupo manifesta sialorreia pelo que cospe muito para o lado; outro grupo, não menos importante sofre de xerostomia, talvez por muito assobiar, à mistura com grande carga de ansiedade. Apresentam sinais de hipoacusia, aparentemente congénita, “atípica”. Alternam períodos de perda total da acuidade para a generalidade dos estímulos auditivos, com paroxismos de surdez selectiva. Associam ainda certo grau de miopia, patologia já inculcada por Saramago em "ensaio sobre a cegueira". Aos referidos pacientes foi-lhes feito um electrocardiograma para despiste da síndroma do “QT longo congénita”, com ênfase na variedade cardioauditiva (ou síndroma de Jervelle Lage-Nielsen), que se herda com carácter autossómico recessivo, como é do seu conhecimento.
O restante exame físico considerou-se nos limites da normalidade.
Do “processo clínico” constam muitos exames complementares de diagnóstico e uma ou outra consulta médica: ora com o Dr. Knock, ora com algum aprendiz de feiticeiro, ora no serviço de urgência hospitalar. À data da consulta não se encontravam sob qualquer regime terapêutico nem foi, até então, instituído qualquer tratamento, na perspectiva de que o colega o fará, se pertinente.
Excluídas as síndromas de Jervelle Lage-Nielsen e de Romano-Ward, agradecia que o meu querido e distinto Adolfo se empenhasse no tratamento da disfunção auditiva aos referidos enfermos.
É minha convicção que, para além da melhoria significativa na qualidade de vida que individualmente lhes será proporcionada, é por demais evidente que a recuperação funcional dos mesmos indivíduos terá reflexos tanto imediatos como a médio e longo prazo, evitando de forma previsível o engrossar de consequências funestas para o Serviço Nacional de Saúde já bem chupado e depauperado pelos custos em crescendo: com muitos "cães a morder nas canelas" e "o cão de lata ao rabo" que chocalha em todo o canto e esquina que o SNS é financeiramente insustentável e, pari e passu, o vai "rilhando" paulatinamente até à roptura.
Recordar-se-á de me haver comentado de que tem tido, nos últimos 50 anos, uma epopeia ciclópica para explicar-lhes e tentar convencer os referidos pacientes, de que a água de um rio não passa duas vezes pelo mesmo leito ou que todas as coisas estão ligada entre si, de modo que não poderão agitar uma flor sem perturbar uma estrela.
Sei, caro Adolfo, que se tem empenhado até ao limite das suas forças físicas e intelectuais em defesa da promoção sócio-cultural desta gente das "quinas", hipotecando-se, que nem condestável, ao benefício da dúvida de que é possível, sem subversão de categorias sociais, mas por imperativo ético, moral e até constitucional (pelo menos por enquanto...), dar-lhes um confortável escalão social, versus aceitar a ideia de que dar instrumentos de progresso aquém não está (ou não quer estar...dizem) preparado para os receber, por forma a acompanhar a esteira (melhor seria a crista) da onda onde surfam os cidadãos mais avisados, é, dito em português pouco suave, dar pérolas a porcos (…) ou, em dito popular: "lavar o focinho a porcos, as orelhas a burros, pregar a padres e converter judeus, é tempo perdido”.
Para concluir, Meu caro Adolfo, quero aproveitar também este relatório clínico, para lhe pedir parecer quanto à mensagem “o que fazer”, mais concretamente, quanto aos guidelines, perdoe-me o estrangeirismo, isto é, a metodologia que o médico consultor deva seguir ao socorrer estes pacientes, sempre e quando houver factores de risco para a saúde dos próprios, para a saúde pública, para a sociedade e para o ambiente.

Post Scriptum: estou a reler o livro “das coisas simples”, de Garcia de Orta. E, já que falamos de ilustres filhos de Esculápio, queria dizer-lhe caro Adolfo, que também me associei ao Cântico: “Homenagem a Miguel Torga". Na circunstância levei-lhe pão centeio de forno comunitário, tanto do seu agrado; com azeite.




Com os meus melhores cumprimentos
Tonidril