domingo, 29 de março de 2009

O Taxista de Miranda

Hermínio Augusto Marcolino, de sessenta e quatro anos de idade, tinha tocado a campainha da morte. Era um barco naufragado que agora dava à costa acossado sem apelo nem agravo, por um destino efémero e deslavado, aqui onde o mar acaba e o imponderável começa!...
Hermínio encontrava-se numa unidade de cuidados intensivos de hospital, ligado às máquinas, acamado e a recuperar de uma emergência médica que o tinha levado gravemente doente, encharcado e sem fôlego, ao serviço de urgência hospitalar, supostamente devido a renúncia de emborcar mãos cheias de pastilhas a troco de mais uns anos de penitência e insossos. A ressonância do velho anátema “perde-se a vida num segundo”, pairava aí com toda a veemência.
Não custa acreditar que Hermínio, teria gostado dos sabores do descomprometimento e da boa saúde como condimentos para gozo de merecida reforma, após longos anos de “pica-boi” como motorista da empresa de transporte de passageiros Cabanelas. Seguramente que estava muito pouco agradecido pelo estatuto de enfermo, na total dependência de terceiros. Os Entrudos passam e as doenças aparecem. Hermínio estava agora mais frágil que as lembranças oníricas de Jorge Palma!...
Por inerência de profissão, Marcolino conhecera bem o nordeste transmontano, as suas gentes e as suas vias, em tempo de infindável jogo de curva e contracurva.
Vencia agora a fase mais crítica da doença e recebia os cuidados de enfermagem na pessoa do enfermeiro António João Torrão.
João Torrão que é natural de Miranda do Douro, iniciava, então, nos alvores da manhã, cuidados de higiene ao ressuscitado paciente Marcolino, a quem insignes doutores acabavam de dar autorização para levante. Boas novas lhe anunciava o dedicado zelador; estava melhor e podia agora refastelar-se periodicamente no cadeirão donde, sentado, recebia as reconfortantes imagens da TVI!... No decurso dos contactos regulares que ambos travaram entre si neste âmbito, o enfermeiro João reconheceu o Sr. Hermínio, proclamando-se desde logo, mirandês dos quatro costados, o que deu origem a que, bem cedo, sem fio condutor, fossem relembrando usos e costumes locais, saltando do inconsciente de cada um os aspectos mais interessantes. Salpicando os comentários com pauliteiros e gaitas de foles, à mistura, assim foram desfiando uma longa meada de memórias, chegando ao ponto de até do “Marcochito Maldonado Cu de Gesso Cu de Barro” se terem lembrado!
Esta assembleia de factores: motorista de autocarro, Miranda do Douro, conhecimentos e vivências partilhados pelos dois interlocutores, terá puxado à lembrança de ambos a imagem do taxista de Miranda: Tábio, Octávio de baptismo.
Conhecera, eu, alguns Tábios: o da Lareira, o Pedófilo, o Tábinho Olhões, o Ocampo, e outros que fizeram história entre os Romanos.
Este Tábio, pelo que me informaram, fora bem diferente! Impregnado de astral elevado, bem-humorado, amigo do seu amigo, empático, de comoção fácil ao sofrimento alheio, só lhe caia bem o chorar das videiras a partir de Março. Imune à adversidade e à lei de Murphy, granjeou grande notoriedade no planalto mirandês onde não tinha mãos a medir, isto é, não chegava para as encomendas, tal a popularidade. Falava mirandés i pertués. Para mim, este recipiendário é um hino à resistência do canastro humano.
Tábio fora também motorista de autocarros escolares, embora a sua principal actividade tivesse sido dedicada a chofer de praça: empresário com carro de aluguer, como se chamava então, com raio de acção circunscrito ao distrito de Bragança, presumo.
O automóvel que utilizava nesta procura de ganha-pão era sua propriedade, o que, só por si, já intrigava os vizinhos. Onde teria ele arranjado dinheiro para o comprar? Tratava-se de uma limusina antiga de importação, americana, eufemisticamente chamada espadinha, recauchutada, resgatada, algures, à sucata, de fazer inveja aos actuais táxis de Cuba, a brilhar! Nela não faltariam os então omnipresentes adereços: vaso de vidro com flor no remate central dos pára-brisas, donde pendia um rosário com crucifixo oscilante, uma pequena imagem de N. S. Fátima do lado direito do tablier e chapa de residência do proprietário, ao tempo obrigatória, com as fotos dos herdeiros em relevo, e ainda a gravação: Pai pensa em nós (Jaques Brel terá copiado esta imagem para um dos seus filmes).
Tábio morava em Miranda do Douro, não tinha grandes posses, mas tinha uma prol a fazer remorder de cobiça qualquer candidato a subsídio de natalidade. A alegria que a sua filharada lhe proporcionava contrastava com os magros proventos que auferia, agarrado ao volante do automóvel, movido pelo desejo único de os criar, e dar-lhes educação e cultura que lhes permitissem ter uma perspectiva do futuro bem mais risonha do que a que lhe tocou em sorte. Uma obsessão constante que o trazia fiel, a um lado, ao amor pelos filhos e apego às origens, e a outro, à necessidade de beber para mitigar a impotência de contrariar a violência da sua sina.
Este mirandês que recordamos era ligeiramente alto e magricelas. A barba mal aparada sempre foi sua marca, e a cor branca desde muito novo lhe enfeitou a cara. De nariz picareta, era vê-lo num fumigar contínuo e permanentemente bêbado como um cacho, não enfiasse ele bagaço em todas as aldeias onde parava.
Os dedos mostravam-se amarelecidos e carregados de lustre pelo efeito da lenta combustão dos “pitilhos” (cigarros sem filtro, conhecidos por mata ratos) enquanto, prensados entre aqueles, aguardavam o regresso à pendência dos seus cauterizados lábios sorventes dos nicotínicos vapores. Era pessoa educada e de bons modos. Nunca o vinho lhe provocou maus fígados. Dos médicos só recebera bons tratos porque falava com eles com se fossem seus irmãos, obrigação que lhe percorria as veias. O destino não quis que engordasse galenos e terá morrido de velho com “oitentas e tais”.
Nunca tivera um acidente sério! Só ameaças, e das tesas!.. Ao menino e ao borracho põe-lhe Deus a mão por baixo!...
Um dia, em Ifanes (Miranda), quando conduzia um autocarro escolar, Tábio, já bem tocado, teve, in extremis, rasgo para parar o autocarro e evitar o acidente; antes de cair, como um tordo, ao chão.
Outra vez, quando conduzia outro autocarro escolar, também a cair de bêbado, seguramente a velocidade reduzida, como era seu hábito, tombou para o lado. Vasco, assim se chamava o passageiro mais velho do referido autocarro, primo do enfermeiro João Torrão, teria os seus 18 anos e já dava explicações de matemática, viajava casualmente no autocarro e presenciou a queda fulminante de Tábio. De imediato saltou para os comandos do autocarro e, depois de o imobilizar, tê-lo-á conduzido até à sua aldeia, Cicouro, deixando Tábio à porta do Calachas (o dono da taberna local), um dos apeadeiros, a partir do qual Tábio continuou a Viagem!...
Como marca mais emblemática deste ás do volante fica esta, registada várias vezes: nas feiras, sobretudo na do Nazo, ou na de Miranda, enquanto esperava pela hora levar os clientes de volta a casa, emborcava copos, uns atrás dos outros. Quando os clientes o procuravam para o regresso, Tábio, já como o aço, pedia-lhes: -metam-me no táxi, por favor-, súplica que tinha pronto atendimento, sem protestos, dúvidas ou receios, dos que em breve seriam por si conduzidos aos respectivos destinos. Já sentado e ao volante do Chrysler, dizia aos passageiros: agora já me podem largar. E lá ia!...de certo com protecção de S.Cristovão, pois nunca se lhe conheceu acidente grave.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Quadrangulanzeiros

Quadrangulanzeiros

A banda dos Quadrazais, bem dito, talvez, banda do caos, ficou famosa à data em que proporcionava um genérico radiofónico ao Rádio Clube Português. A graça e o sucesso vinham-lhe da desafinação que as notas (com)fusas e semifusas emprestavam às suas partituras musicais.
Em gesto de homenagem, não fora eu envergonhado, sugeriria a António Macedo a inclusão desta banda nas “músicas da minha vida”, ou outras ondas que se escapem regularmente da Antena 1.
Com isto quis tão só desfazer qualquer atropelo que o título em epígrafe pudesse fazer à referida banda, ou a mesma banda apagar, por truques de parafonia, o lampião desta crónica.
Esta acrobacia de palavras, pretende ir ao encontro do desenho melódico desse agrupamento musical.
Confesso que sei que o prefácio que acabo de escrever é um drible que faço ao leitor, apostando na narrativa de suspense até ao derradeiro ponto final.
Não falta presunção, claro, com alguma água benta à mistura; tudo o mais é aventura pós Babel.
Àqueles que tenham dúvidas de que a época de oiro do cinema português anda às costas de Maria Matos, António Silva, Maria Neves, Vasco Santana, Milú, Ribeirinho, Laura Alves, Barroso Lopes, Teresa Cabral, Fernando Ribeiro, aconselho-os ver ou rever: “O Pátio das Cantigas” ou “O Costa de O Castelo”, entre outros, recorrentemente passados nos nossos canais televisivos.
Atrevo-me a dizer que caberão no buraco de uma agulha os consumidores compulsivos do pequeno ecrã, que não tenham gravada na retina a cena em que Simplício Costa: O Costa De O Castelo (António Silva), traz para casa um rádio acabado de comprar e demonstra, explicando à curiosidade dos comensais dessa residência nas imediações do Castelo de S. Jorge (na costa do qual, olhando o poente, ficava uma Pensão, não recordo o nome, que me acolheu algumas vezes), como funciona e o porquê de emitir aqueles esquisitos ruídos. Alguém da casa pergunta: “E isto toca?” “Se toca! Liga-se à parede e é uma torneira a deitar música!”

Todas as cidades, vilas ou mesmo aldeias, terão os seus heróis, os seus vilões, os bons, os menos bons e os maus, de estatística grosseiramente proporcional à grandeza do seu universo; muito mais de condicionalismos ou “life events”do que fatalidade genética. Preto no branco: quem nasce torto ou mau, terá que virar as entranhas do avesso à procura de torno que o endireite. Sussurram-me que neste bouquet de recordações, não há torpeza, nem gente reles: augura-se um fim feliz.
Torres Vedras, famosa por ser sede do maior município do Distrito de Lisboa, pelas suas gentes, pela riqueza monumental, pela gastronomia e pelo carnaval, entre outros atractivos, está, como as demais urbes, inexoravelmente marcada por vicissitudes antropológicas e, bem longe de albergar o homem vitruviano.
É nesta Turres Veteres que a família Pinto se perde na contagem implacável da clepsidra. Essa temporalidade que o vento leva, empurrado pela nortada que descola da Praia de Santa Cruz vindo do mar. Esse tempo de memória e saudade, que se esfuma sempre que venta de sudoeste a favor da superfície frontal, fazendo-se anunciar no Casal do Ulmeiro, por assobio de cobra. Aí, no Ulmeiro, ainda canta galo; um cata-vento encimado pelo ex-libris de Barcelos, indiferente ao ruído “sonotone”, produzido por geradores eólicos. À sombra desse negrilho ou olmo (como cá se chama) sobrevive a pá Narvik que algum lapão, na procura dos alísios, terá confiado à hospitalidade dos Bastos. Por acreditar no que poderíamos chamar de instinto e distinto acto conservador, da parte de António Bastos, de orelha à escuta do eco de passos perdidos.
A referência onomástica que aqui faz ninho, tem sido fiel ao mesmo cesto em que sempre pusera os ovos, continuando arreigada ao mesmo comércio, de geração em geração, na referida cidade do Distrito de Lisboa.
Dirijo, desta feita em tom familiar, a pergunta ao meu sabido amigo Toninho Bastos: Torres Vedras deriva do latim, dos Godos, ou também bebe do léxico Turdo? Tema para dissecar no poço do veleiro Tana, ao sabor do Atlântico: fica em agenda.
Com o intuito sábio de não deixar cair o queixo aos clientes, o marketing, outrora propaganda, da actividade comercial dos Pintos poderia recorrer a metáforas, ideias ou expressões lustrosas como as que aleatoriamente dão aqui a cara: “Plano Poupança Reforma (PPR). Face às dificuldades de financiamento da Segurança Social e à possível redução de reforma num futuro próximo, comece desde já a poupar de forma gradual e com o mínimo de sacrifício pessoal para que possa salvaguardar o dia de amanhã”. Ou:
“Sabia que a sua profissão pode dar descontos no seu seguro Automóvel?”. Sendo este anuncio, acreditando na investigação jornalística, o gongo de marketing utilizado por um dos pintos, que lembra: “O aumento da esperança média de vida, a baixa taxa de natalidade e a insuficiência das contribuições para a Segurança Social, porão fim, tudo indica, ao breve sonho de um Estado Providência, capaz de garantir uma aposentação condigna”.
Também se pode ler em vertente bloguista: “Desde 29 de Fevereiro que a Pintos Corretores/Seguros está ao vosso dispor nas novas instalações de Torres Vedras. Poderá assim contar com um novo espaço mais funcional e melhor acessibilidade. O novo escritório fica localizado em local central da cidade, representando mais um passo em busca da “Qualidade superior”.”Pintos Corretores/Seguros. Desde 1945”.
Considerandos à parte, a drogaria fora sempre o ramo do clã, até que a concorrência dos dias de hoje trouxe tal insegurança e insustentabilidade ao negócio, que aleijou irremediavelmente as vendas multiuso que praticava, e obrigou a procurar pouso em novo galho empresarial, como dito antes: Seguros. Sem dúvida, que a aposta estava temperada com olho de pássaro e faro canino em temática muito mais apelativa ao consumo porque imprescindível, qual mal necessário, a um (des)protegido ser humano.
Sem trade mark preferida, representação exclusiva, ou patente pessoal, foram agentes de tudo e de nada. E ainda lhes sobrava tempo para alguma prática filantrópica, procurando apoiar os pacóvios e fraca roupetas nas suas iletracias e demais dificuldades sócioculturais. Aconselhavam e refrescavam o espírito dos clientes com as últimas novidades do desporto, da ciência, da moda e da política.
Bártolo Tristão acabara de entrar na drogaria “Pinto”, à baixa Torriense. Cumprimentou o dono que se barricava atrás do comprido balcão de madeira, com solução de continuidade a uma das extremidades, ao estilo de ponte levadiça, para passagem do pessoal da casa. Foi desfiando pedidos deste e daquele produto, deste e daquele material, até arrebanhar toda a listagem que tinha na cabeça, à mistura com pareceres sobre as últimas jornadas do Sport Clube União Torriense. Enquanto escolhia e conferia a mercadoria, algumas lâmpadas à mistura, foi ouvindo os mais variados comentários e conselhos de Pinto, entre uma bicada e outra… aqui e ali… a este e aquele… a isto e aquilo… como o mundo está mudado… se soubesse o que sei hoje… se fosse mais novo…, um não acabar de ideias que brotavam na justa medida do tempo em que o cliente o ocupava.
Pagou a conta, agradeceu todos os ensinamentos prodigalizados, apertou a mão ao comerciante e, já com um pé na rua em pose queime, voltou a entrar. A curiosidade e a ansiedade davam-lhe um ar de detective a lançar a última pergunta do interrogatório, tendo nesse trejeito perguntado: “Sr. Pinto, afinal que vem a ser isso da electricidade?” Estávamos nos alvores do séc. XX. “Bom, Bártolo” - disse Pinto Remédios, acometido à hora certa, no lugar certo, por invejável dose de inteligência emocional, aspergindo bonomia em atitude empática para as angústias e ansiedade próprias de quem a iletracia sempre bateu à porta, mas com fome de saber- “bom, electricidade é uma espécie de diabanzos que vêm pelos quadrangulanzeiros e, quando chegam à lâmpada fazem” - exemplificando com um estalar de dedos- “pif-páf óh claréquesse!”