quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Conceitos e preconceitos

«Kaim! Kaim!kaim!» «Oh my God!»
Acordo em sobressalto, aflito, a tremer como um vencelho. Sinto uma onda de frialdade a passear-me a espinha, só de pensar que alguém bateu na minha cadela. Corro para a porta da cozinha, que escancaro, e chamo-a com voz angustiada: «Inês! Inês!» - e ela aparece com cara de caso, cabisbaixa, olhos mortiços, àquela hora da madrugada, alta. Que alívio! Afinal era uma matilha de rafeiros esfomeados, proscritos da arca de Noé, que, com ladrar lancinante, fugiam da ameça de algo contundente que alguém, provavelmente, lhes arremessara. Não pude inteirar-me, em absoluto, da naturteza do delito cometido por estes vira-latas, nem da severidade da sanção que lhes foi imposta. Sou, sim, testemunha da correria e do cuincar da matilha em fuga apressada, a tresandar a pânico. E quanto aforismo árabe “Os cães ladram e a caravana passa”, o que eu apenas estou habilitado a asseverar, num arremedo da afirmação do óbvio que tanto celebrou o conhecido militar francês morto na batalha de Pavia, Jaques de la Palisse, é que os cães ladraram!

Uf! No pasa nada! Take time, make yourself at home, relax: it’s over!A partir desse momento, voltei para o "quente" e reconciliei as pálpebras, ainda sem sono apreciável. Respirei fundo, ouvi música do meu agrado, em surdina e … fruí…
Vá lá, façam o mesmo! Podem ler os fragmentos desta crónica com música de fundo, fazendo jús à bondade da musicoterapia. Sugestões para os mais preguiçosos na escolha, distraídos ou catecúmenos: “Le Deserteur”, com “paroles” e voz de Serge Regeanine; "Ouro do tolo" de Raul Seixas; para o final, já com as pestanas entrelaçadas e as pálpebras a pesar toneladas de sono, mas, ainda assim, com a suficiente acuidade auditiva, oiçam algo de Miton Peython e …, finalmemente, sucumbam ao poder das ondas morféticas.
Até aqui, tudo bem! Os conselhos até são bons … já o texto que os plasma … com franqueza …o texto … a escrita suscita compaixão a analistas que escrutinem só (...) conteúdos! Muitos chavões desnecessários e muitos lugares comuns…
Pelo menos, os lugares comuns sempre terão o mérito de ser o ponto de partida para intressantes reflexões que, em regra, concitam.

Sabina! Diz-te alguma coisa a rima: baila, baila, bailarina, sempre escondida atrás da cortina…?
Adiante. Desde há trinta e seis anos que não me dou a enleios com ninguém - prata da casa à parte - e, já então, só com a labareda de um bom corpo feminino.
Talvez a magia da noite, talvez reminiscências de um sonho erótico qualquer, talvez mal acordado ou mal-humorado, dou comigo a rilhar - meditar, se preferirem, um conceito menos humilde - um chavão muito apaniguado dos disparos verbais de exagerado senso de masculinidade e virilidade exaltada, à flor da pele - com ou sem vigara, digo eu - “Comi aquela sedutora!” - Nunca entenderei onde radicam os fundamentos de tão popularizado chavão, pela enormidade da carga antropofágica que contém; da minha parte, em todo o caso, nada teria a opor - antes, deliciar-me-ia a ideia - a que fosse a gaja a assumir o papel de antropófaga.
Mas, enfim, são olhares e sentires diferentes sobre as pessoas e as coisas deste mundo.
A verdade e a mentira não mudam assim tanto com o deslizar contínuo da carruagem do tempo (lugar comum); e os preconceitos e os conceitos, mesmo que filosóficos, não se alteram só por acção dessa carroça puxada por relógios de sol (lugar comum). Os homens continuam biologicamente iguais aos dos séculos idos; e as mentalidades não sofrem rupturas abruptas e definitivas; vão mudando lentamente, porque o alívio do passado tem sido, na esmagadora maioria dos casos, lento e penoso; nada neste mundo vivo sempre em transformação, é finito, tal como nada é eterno (lugar não comum, mas oportuno). A ficção tende aproximar-se da realidade. Nada aqui é clássico (e, a sê-lo, como gostaria (...) seria imitação), tudo lugares-comuns, já que não há notícia de qualquer náusea ou convulsão política em preparação, muito menos na rua. Para já, contentemo-nos se houver, simultaneamente, menos descamisados e menos engravatados.
Para quem não queira, ou não possa embrenhar-se nestes conceitos de intelectualidade mais elaborada, avivo um pensamento do génio sadino, Manuel Maria Barbosa:
Neste pais marginal,
Onde a vaidade não se apaga:
Todo o cobarde faz força,
E mesmo valente se caga!

Continuando, à procura de fragmentos dum tempo perdido. E às vezes com um tiro no pé, não fora, eu, um burguesito!

Dizia eu: à medida que o tempo se esgota, mais enxoto o afadigado "Turra"que pulula a Lusitânia, a arrotar postas de pescada, palreiro, petulante e mau sémen de Adão. E constato, que essa figura trombeteira e narcísica, ora consciente ora distraída, é perigosa por traiçoeira. Mas também suicida, sobretudo se provocar, no outro, reacção de aparente e enganosa bonomia e a interpretar nesciamente, expondo-se a consequências que não previu. Mas, enfim, esta vida tem seu (...) preço! Sobretudo o de quem vê passar os comboios e sofre em silêncio (lugar muito comum), com ou sem vale de lágrimas; com ou sem efeitos colaterais!
Vou correr o risco de me crucificarem, ou, na melhor das hipóteses, ser apedrejado, se aqui e ali, atestarem deficiente concatenação no discurso, quando aparentemente alterar de feição brusca e deliberada a forma consistente, organizada e lógica exigida à trama conteudística da redacção, o que, a ser verdade, levaria irremediavelmente à perda da coerência, identidade ou constância estilística.
Sabina! te veo hoy un poco acojonado; ânimos, joder! No seas tan pesimista ni bipolar: que lo parió... deruba el muro; no te fíes de ciertos comunicólogos y sociólogos, ni en todos mozos de encargos y de noticias: te echam a la mierda a la vuelta de la esquina...
Sabina! vate a lo tuyo no te eches de menos: esta vida és puñetera y no de puta madre!
Sabina! No dejes que te jodam la música!
Estou tranquilo! Não fosse a vida de encantos e desencantos; inserção e desinserção; pára e arranca; fragmentada e una; lógica e irracional; soberba efilantrópica; alegre e triste; de sucessos e de infortúnios; de amor e de desenganos; etc, etc, etc...! Tudo lugares comuns, com que, alguns desafortunados, não raras vezes, apanham no toutiço (também conhecido por caveira ou calvário): carícias de chicote ou vergasta.
Continuando no discurso directo, é tempo de informar que nunca fui menino de coro, mas sobrinho neto de sacerdote, de quem fui sacristão (ajudante dessa arte, devo confessar). A vocação para o sacerdócio revelou- se-lhe aos vinte e um anos: não houve, pois, oportunidade para fulgor castrense. Guardo gratas recordações de uma relação, vivida, de grande amizade com este tio eclesiástico. Já do irmão (do padre), professor primário, comunista assumido, não tenho tantas recordações (não se devem tirar elações políticas desta confissão).
A minha genealogia atravessa os Laras, na mais pura linha de El Cid o Campeador... campeão da porrada!
E, talvez por essa herdança genética, ainda dou no duro, isto é, o corpo ao manifesto, apesar da idade, e de saber, desde há muito, que o homem é para pensar… e que com a mão na foice, não se enriquece (quando muito, se aquece) a trabalhar...
Estas são algumas vivências para, resumidamente, sem falsa modéstia, entender o sofrimento dos outros, novos e velhos, sem culpa aparente, só porque o mestre não previu o erro e involuntariamente se enganou, e não corrigiu, até ao momento, defeitos genéticos e outros males do corpo e da alma. Mas também, é nesta perspectiva que gosto dele – mestre - porque também falha.
Porque já vão sendo horas de abrir o relicário que custodia o pote da minha cidadania, aí vai: Para quem não sabe quem eu sou, apresento-me como filho varão e morgado, de uma família pequeno-burguesa com registo no planalto transmontano nordestino. Quando dei por mim na vida, confrontei minha mãe com o imaginário que então me assolava, assumindo-o com toda a frontalidade: - «mamã quero ser grande!»- Como não cresci mais do que um metro e setenta, só teria uma solução: Colar-me aos mais baixos! Esta experiência não solvia a situação, porque ironicamente manicaística, e não me aquecia as veias de alegria. Procurei distanciar-me dos baixos para evitar humilhá-los; e dos mais altos para não lhes chegar azeite ao ego. E acabei por tirar uma conclusão muito importante: O problema era, sobretudo, dialético! Não se tratava de altura correcta, que era relativamente irrelevante, mas da altura certa; descoberta tardia, devo confessá-lo. Reflexões, no silêncio, levar-me-iam a concluir que o retrato a meio corpo seria a síntese ideal para a minha estatura.
Adoptei a posição de sentado, com sorriso matreiro ao canto da boca, sem cachimbo. Anel de banho de ouro trabalhado, ainda que discreto, no 5º dedo da mão direita - não me convinha mostrar a mão esquerda por defeito no quarto dedo, sequela de rebentamento de coronha de espingarda de carregar pela boca, que um vizinho me emprestara para dizimar tordos para a “arrozada”, a quem mais tarde caberia, por pior sorte, morrer despedaçado por rebentamento de granada durante a guerra colonial, em Angola. Voltando à minha pose: A minha mão direita não dava qualquer posição especial aos dedos, nem tapava parcialmente a boca. Apoiava-se no cotovelo e, fazendo uma cova com que escorava o queixo e a cabeça, dali resultava um efeito que, aprimorado pelos retoques por si aconselhados, espantou o próprio fotógrafo, levando-o a dizer enfaticamente: Um pensador!!!
Aqui chegado, não resisti pedir a algumas musas, que emprestassem as suas catedrais para me sentir confortado, com elas de perto, em devota atitude. Como que antevendo, para o Além, a satisfação da fatia que um desafortunado mortal não pode ainda almejar: O ter conseguido estar entre tudo e entre todos que fariam as delícias terrenas.
Desfiri um golpe demolidor em todo o espartilho que se abateu sobre Camões, sobre o seu destino, sobre a sua desventura. Vou ajudá-lo a libertar-se da vida mísera que levara e subi-lo ao céu da «Ilha dos Amores». Premiá-lo e compensá-lo de todas as privações, de todos os esforços e canseiras. Levar-lhe o recado de Samuel Beckett: «Não há nada mais cómico de que a própria desgraça». Dar-lhe tantas Nereidas quantas Vénus julgue necessárias para que « possa ser feliz ao natural... e senhor de um amor livre e espontâneo ao luar».
O esplendor poético, cantante do amor às coisas simples, arrastará na correnteza das águas engrossadas e revoltas do Douro - aquelas que, no "Cachão", capricharam na imolação pelo naufrágio da nave em que seguia o barão de Forrester - os bodes, carcereiros e carrascos do «Doce sonho», dando-lhe a alegria, o fulgor, o ímpeto, a vida, a tudo quanto de «doce foi engano», para, assim, «de alegria e prazer morrer ufano».
E disse solenemente: - «Vou dedicar-me à leitura de Saramago que conheço mal, como escritor!»
A noite está aí, já densa e longa. Ofereço-vo-la: majestática e perturbadora. «Enfermeira antiquíssima e serena», para que trate e cure todas as insónias e angústias de que padeceis.
É a hora da verdade. Do absoluto. De olhar para dentro. De nos olharmos, lúcidos e senhores dos nossos destinos, nos breves minutos deste tempo-fronteira e tampão, daquele que o espelho nos esconde. Há que cultivá-lo e fruí-lo, sem o mínimo desperdício ou concessão ao supérfluo. O encontro com o silêncio corre voraz. Fora dele, sinto que o presente não existe, ocupados que estamos a olhar para o passado, para planear o que se segue daqui a um instante, ou no futuro remoto.


Até um dia ou até mais ver!