sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sabedoria

“Summertime, and the livin’ is hard, daddy’s rich and his momma’s flat calm…”
A faina da malhada ainda se processava sem quebranto e sem lamúrias, como o havia sido ao longo de todo o dia, sob um sol abrasador e dono absoluto de um céu azul de Agosto; ainda mais escaldante porque o lajedo subjacente à eira, sobreaquecido, contribuía com mais e mais calor sufocante. Pairava aí um ar sem bafo, sem rugas, despido de qualquer farrapito branco, e não se viam pequenos remoinhos, minúsculos tornados, que levantam pó e arrastam consigo pequenos insectos que serão alimento apreciado por aves que os esperam planando nas ascendentes térmicas. “O Pinheiro”, nome porque era conhecido o local onde se procedia a essa tarefa anual de separar o grão da palha, era ficcional, como ficcional era a sombra que dele emanava. Pinheiro nem de copa redonda, nem gótico, nem outra espécie qualquer. E, Vivenda Pinheiro, como também se chamava, não reunia condições arquitectónicas para tanta pompa e água benta!
Seriam as seis da tarde e o sol mantinha-se empoleirado no seu alto, atento e sem sono; seria necessário esperar mais três horas para que, com o entardecer e à boca da noite, o astro rei se deitasse para lá do oeste, mais além, ainda, do sol-posto. Os pássaros, na sua maioria pardais, emudeceram, por ronha, o chilreio, acoitados em galho amigo, no recato da sombra da folhagem, e no consolo de alguma brisa que soprasse, suave: ganhando folgo para a sinfonia com inicio marcado ao moribundar desse dia.
Zé Coelho, homem de estatura média e franzino, encarregava-se afoitadamente de alimentar de palha de centeio a debulhadora, com perfeição cadenciada; aliás, nesta como em todas as tarefas a que este trabalhador de rebimba o malho deitasse mão, designadamente na qualidade de vedor, sacristão ou pregoeiro pós missa, dava cartas. Em fase mais tardia da vida, porque não sábia, dedicou-se a pastor de gado e comentador desportivo. Zé Coelho, dava cartas na desenvoltura do trabalho, impondo o ritmo aos demais, na execução das tarefas respectivas. A malhadeira soltava gemidos e roncos abafados com timbre grave de fagote quando engolia as molhadas de palha, como que avisando Zé Coelho que tivesse cuidado com as mãos, não fosse o diabo tecê-las: com o peso do cansaço e com as constantes carícias labiais no pipo comunitário, que corria todo o espaço da eira à velocidade de um abelhão, fazendo esquecer a ambiência abrasadora, até que os corpos caíssem que nem pedras devorados pelo sono e rendidos à fadiga: mulheres a um lado, homens a outro.
Marquinhas, a senhora do casal, depois de acabadas as lides do almoço - louça limpa e devidamente arrumada no lançador da banca de cozinha - regressara ao local do Pinheiro onde a malhada se desenrolava, e sentara-se em merouço de palha, que lhe conferia confortável almofada ao avantajado par de nádegas de que era dona e senhora. Marquinhas era monárquica, beata, melancólica, olhos fundos e bonitos, de olhar penetrante, e incomensuravelmente meigos e desculpabilizantes para os entes queridos; anca larga, vestia preto sombrio, mais por peso dos costumes do que por luto pesado que as circunstancias à altura recomendassem. Calçava meia preta que ancorava na raiz da coxa, por liga elástica e manifestava particular gosto por blusas brancas bordadas, de seda estampada, sempre que era oportuno, bem como por combinações (lingerie) de toque macio; bebedora compulsiva de café de cidreira: uma santa. Viajante incansável, para qualquer parte: Fátima e Cristo Rei de Almada, paragens obrigatórias. Nunca fora a Lurdes ou a Roma, locais que lhe ocupavam a memória e a vontade de peregrinar.
Nessa tarde de azáfama, solarenga e quente, o perigo andava, como sempre, por perto e à espreita. É assim que, nas mudanças de posição de sentada, para dar tréguas à nádega mais solicitada para assento, sentiu uma violenta ferroada na coxa que a fez soltar um grito de dor: - ai Jesus! Lamento que foi ouvido e presenciado por alguns dos jeireiros que, impulsionados pelo insólito acorreram de imediato a socorrer a azarada senhora, ajudando-a a levantar-se. É neste instante que vêem o agente causador do alvoroço: uma pequena cobra com aspecto de “víbora” que tentava escapar-se assobiando de medo. Mataram-na e enfiaram-na em frasco com aguardente, que nem formol, onde esteve, décadas, submersa. O veneno pode matar! Era a ideia dominante. Impunha-se uma consulta urgente: levá-la ao hospital ou chamar o médico. Qualquer das tarefas se adivinhava difícil, pelo transporte. Optou-se por levá-la para casa e chamar o médico. Assim foi: levaram a senhora deitada em carro de bois até à residência, enquanto Augusto Júnior mais Januário (ajudante), partia apressadamente em camioneta Berliet, a chamar o médico para acudir à emergência, o melhor que pudesse e soubesse, até porque não se conhecia antídoto.
- Donde teria aparecido aquela cobra? Perguntava Januário, perplexo, enquanto descia a N314!
- Cobra! - exclamou Júnior- Víbora, c..lho! Ou veio na palha, ou foi meu pai que a trouxe do Mogadouro, em algum saco de batatas que tenha sobrado de Campo de víboras…! -.
Na procura de médico disponível para a emergência domiciliária, encontraram Dr. Adalberto, clínico indefectível e sempre complacente com aflições realmente urgentes. Homem que não dava valor à importância e, se a enfrentasse, perguntava onde comprá-la e a que preço!? Dr. Adalberto era um homem na casa dos cinquenta, uma idade que podemos qualificar com optimismo e carinho como o equador da vida, já em irreversível declinação biológica. Mas também, e por isso mesmo, a que confronta o homem com a hora da verdade e lhe exige peremptoriamente que dê o melhor de si. Até porque os tempos das angústias, das incertezas, dos erros, dos pesadelos, do apoio e lições de colegas experientes tinham dado lugar a um médico calejado, sabedor, confiante e confiável.
Este João Semana era pouco andarilho, porque o porte grandalhão, a fama de "Obélix", e o não menor proveito de lambazana por tudo em que a carne de porco é matéria-prima, lhe condicionavam os gestos, as pernas e as mexidas: embora, ao contrário daquele personagem gaulês, este esculápio ao não haver caído em nenhum caldeirão de poção mágica de druida, era calmo no trato e manso nos gestos. Contrariamente a Obélix, que se saiba, Dr. Adalberto era casado com senhora muito bonita, a quem não gostava de ver aproximar-se muito da janela: o sagrado compromisso do matrimónio, às vezes, não chega ou não impede que o coração saia pela janela fora e esqueça ou não saiba o caminho de regresso!
Dr. Adalberto aceitou ir na camioneta de Augusto Júnior observar a mordedura e evacuar Marquinhas para o hospital, se o quadro clínico o aconselhasse. Munido da respectiva "mala de médico", ocupou o "lugar do morto" na cabine da camioneta, com Januário prensado a meio do assento corrido a toda a cabine, e lá foram a caminho do Brunheiro, de vidro aberto, apreciando a paisagem que fugia em sentido contrário.
Chegado ao destino, tinha a esperá-lo Augusto, o dono da casa, que o levou ao contacto com Marquinhas. Cumprimentou, trocou algumas falas, observou, palpou e optou por tratamento local e relativamente simples, ao ter concluído que dominaria a situação com o equipamento e as ajudas farmacêuticas que trazia consigo na respectiva mala.
À vista da paciente e demais presentes, começou por dissertar sobre répteis e serpentes, e dizer não haver antídoto para a mordedura da víbora-cornuda, a mais perigosa para pessoas debilitadas ou crianças, o que não era o caso, tranquilizou. Tão pouco se poderia temer a espécie vivípara, que lhe mostraram, porque parecia tratar-se de parente menos virulento, ao não possuir o desenho de pele distintivo da cornuda. Optou por colocar garrote, dar analgésicos e unguentos locais sobre a mordedura, e ficou relativamente tranquilo com os poucos sintomas e o discreto entumescimento local. Disse para consigo: “wait and see”!, com a convicção de que o prognóstico seria favorável.
Acossado de todos os lados pela curiosidade humana, com um voejar constante de pessoas à sua volta, terminou a observação e respectivo aconselhamento da desditada. Alguns ganapos de roupa encardida, com moncos, ranhos e sarros mal disfarçados, e com calça rachada, engrossavam a plateia de mirones.
É neste momento e neste ambiente que começaram a chover perguntas inapropriadas, e apelos de todo o lado:
- Senhor Doutor o meu filho tem esfoira!;
- Senhor Doutor o meu pai não obra há cinco dias!
- Senhor Doutor, chá de bolota de roseira brava faz bem às pessoas, digo: ás guerduras, acúcres e tinsões?
- Não te sei responder, homem de Deus – retribuiu o clínico, sem receita ou panaceia assertivas.
- Só perguntei pensando que se o dito chá faz bem a cavalos e a burros, também deve fazer bem às pessoas!
– Que Deus te responda! - retorquiu Adalberto.
- A minha tensão tem andado a cento e sessenta e um à hora: preciso de soro?

Dr. Adalberto aguentava as perguntas tergiversando com exemplos, que entretinham os perguntadores:
- Fulano, com 23 anos caíra de um galho onde colhia cerejas e fora levado ao hospital onde apanhara 7 pontos. Ficou internado. Ao 2º dia disse a uma das visitas da sua confiança que lhe levasse uma garrafinha de aguardente que sabia que era boa, porque estava habituado a beber todos os dias um copo de manha e um copo à noite ao jantar. Ficou curado; e casou a seguir. A Mulher morreu aos 82 anos, e primeiro que ele. Teve 26 filhos, que morriam frequentemente à nascença; sobram 12, menos um que veio em esquife da Guiné. - A minha mulher nunca se levantava da cama sem estar prenha após ter filhos -; contava que também lhe chegava a roupa ao pêlo, um pouco…! Mas, ainda cá anda!
Rosa Maria, outra queixosa, dizia: - Senhor Doutor, tive três filhos quase seguidos, ao terceiro já não andava bem, mas, em vez de repousar pus-me logo a coser pão, fiz força, o úterê desceu-me à boca do corpo e escapava-se-me a urina amiúde: tenho a vida negra. Hói jasus! Que posso fazer?
Outra dos presentes: - Tenho aqui um calo na ponta do dedo, parece um cão ferrado: zás!, zás!, zás!, antes queria que me cortassem o dedo que ter sempre aqui este olho de pita a ralar-me dia e noite: vejo-me negra com estas dores de morrer. Abaixo do joelho até se me acende a perna. Vou para comer e o coração e o estômago não querem; estou abatida: apesar dos depositórios. Com a rela da espinha nem posso tocar as vacas ao monte. Que vou fazer à vida?
- Sr. Doutor, tenho chechenta e dois anos, morreu-me o marido cum câncaro de fígado, há pouco, vivo sozinha e ando desconfiada: tenho medo de ter um mal ruim, caio muitas vezes, alguma coisa se passa comigo, ando aflita; agora que se vêm tantas destas coisas ruins por aí..., a doença da moda...
Dr. Adalberto achou chegada a hora de por fim ao tempo da consulta, até porque o emaranhado de queixas e padecimentos não permitiria um raciocínio lógico e só embaciaria a marcha para o diagnóstico.
É aqui que Dr. Adalberto joga uma cartada de mestre cuja sabedoria emudece todos os consulentes dizendo:
- Bem… Olhai…
Pés quentes,
Mentes frias,
E límpidas urinas;
Cagai para as medicinas.
Terminava a consulta, já não era sem tempo e, Augusto, dono da casa, perguntava ao galeno pelos honorários:
- Quanto devo, Sr. Doutor?
O clínico queimou meia dúzia de segundos a reflectir e inquiriu-o:
- Tens aí um presuntinho?
Ainda a pergunta se volatilizava no ar, já rapidamente cobriam a mesa do escano com toalha de linho, pressagiando um ambiente de água na boca tão do agrado do homenzarrão Adalberto.
Ao ver um opulento exemplar de presunto em cima da mesa, seguramente da “desfeita” do que fora um soberbo borrão, com aquele coto podal característico, que não engana nem um cego; pão centeio escuro e caneca canelada azul e branca, generosa em volume e bem abonada em conteúdo, disse o Galeno de olhos arregalados:
- Não é nada! Não é nada!
- Que Deus o abençoe e lhe dê muita saúde! – agradecia, assim, em jeito de estribilho, o coro das velhas, à despedida.