sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Homem dos sete instrumentos

A manhã acordara com nevoeiro que se espreguiçava, displicente, sobre a cidade, vindo do rio. Detrás das vidraças da porta da sua loja, aquecido pelo fervilhar de ideais, mais que pelo calor emanado das fracas brasas afundadas em braseira de cobre e abafadas em papel de prata, Saramita, como Estragon e Vladimir, olhava o movimento da rua, mergulhado em pensamentos, à espera de alguma coisa ou de qualquer surpresa que lhe cortassem o tédio.
Tummm-tummm-tummm...tum-tum-tum-tum! Vai ser representada a peça a bingala… - Não. Não vai! - Murmurou para consigo, Saramita, passado o momentâneo devaneio, acordado ante a austera realidade que obriga a esfregar de olho. "Enfim!", disse ele, "fico-me, pelo entreabrir da cortina a sonhos e projectos para um dia que começa!" Tudo isto fora rumor de Sibila, Quinhas Pomba, quem sabe, que lhe sacudia a razão de volta ao mundo real .
Era uma vez, um figurino e astuto figurão, que dava pela nomeada de SARAMITA, a quem José Manuel Fontes Mesquita cedeu a identidade. Com nomeada num círculo territorial com diâmetro vertical de Tamaguelos à Várzea e diâmetro transversal para cá e para lá do rio Tâmega, tocando Segirei e Serraquinhos, entre outras aldeolas. Poderá, à primeira vista, parecer pequeno este universo onde Saramita era constado, sobretudo àqueles que nunca o calcorrearam a pé: que ignoram, que dava vida a centenas de pardais, tentilhões, estorninhos, codornizes, perdizes, melros, pintassilgos, cucos, milhafres, e outros fidalgos do voo; outras tantas flores; outras tantas árvores de pequeno e grande porte; outros tantos frutos; outros tantos vegetais... Saramita sobressaía aí com acentuado pendor político-social. Avesso à cor cinzenta, escolhia do arco-íris o vermelho, cor com que gostaria de tingir o tecido da bandeira hasteada na Edilidade, flamejando livremente quanto o vento é livre. Neste alinho libertário, pedia aos deuses um asteróide que acabasse de novo e de vez com os “dinossauros” do regime, dirigindo ao Céu votos ardentes a fim de que qualquer peste deles fizesse delícias.
Desconhece-se a origem do pomposo pseudónimo que escondia José Mesquita. Talvez corruptela de Semíramis...!? Quem sabe? O que espicaça assaz a curiosidade a vasculhar um pouco mais a origem, na suspeita de que Saramita era bem capaz de morrer de amores pela deslumbrante e voluptuosa rainha da Assíria, por quem se interessava e procura dados biográficos, com arrebatamento! É muito provável que a informação mais fiável e pormenorizada esteja confiada aos arquivos sicilianos do “Clube da Sola”!
Este nosso conterrâneo, Saramita, foi, também, uma verdadeira fonte de inspiração, um manancial de situações burlescas. Um talentoso e nato fazedor de estórias a esbanjar graça e carregadas de maliciosa inteligência. Um irrequieto. Um inconformado. Um safado. Um andarilho por terras do Brasil. Um iconoclasta. Um actor: “dos melhores amigos as maiores desfeitas”, dizia ele a propósito de um incêndio que, por acaso, ateara em fazenda própria, coberta pelo seguro!.. Ou “eu já estou do lado de cá, agora que se f...dam"; ou “para comer qualquer partido serve!...” . Um autor de peças teatrais: “vens ou ficas?...” Um topa a tudo, como diria o seu melhor amigo, Castelo Branco, simultaneamente o seu braço direito.
A relação com o feminino foi de um fervoroso anti-misógino: propenso a encantamentos, ainda que, não fora a educação e os costumes machistas, expressava um cavalheirismo encapotado, dado a assobios trinados de tirolês, recorria a figuras e acções românticas, à arte do gracejo, arredando com isso alguns concorrentes, enfadonhos, empoados e bem-pensantes das redondezas; quando o seu coração tinha necessidade de reconforto e novidade e se dava a devaneios quiméricos que já vinham da adolescência. Nem mesmo a epectase o fazia assustadiço: um garanhão!
Da polícia também não era figura muito grata. “Que melro!” Diziam as autoridades. “Um passarão de respeito.”
A análise retrospectiva do multifacetado cidadão Saramita, leva a concluir que, nele, a inteligência emocional tocava a plenitude.
Um furacão na resposta viva e cáustica que arremessava ao adversário, ou com que se esgrimia na praça pública ou aquecia as tertúlias. Granjeou prestígio e capitalizou o respeito dos opositores que varria com um verbo demolidor e emudecia sem piedade. Outros mais pudicos ou incautos enrubesciam mais que um Porto ruby. Colheu a amizade dos acólitos com quem repartia “as canas” que apanhava.
Castelo Branco, o amigo do peito, vem a talhe de foice, foi o único candidato a entrar para a banda militar, não conhecendo uma única nota de música, mesmo do tamanho de um carro, mas, a qualidade de “orelhudo” e o talento, eram tais, que lhe permitiam reproduzir à primeira qualquer música ou canção acabada de ouvir. Esta aptidão, entre outras, só conhecida ao Toninho das Pedras, terá sido uma bênção para muitas “performances” do herói Saramita, a duo.

Esta curta estória - Saramita tem muitas, qual delas a melhor!... - Ajusta-se à etapa desta escrita, ao mesmo tempo que lança aqui uma lufada de humor.
Encontrava-se o nosso herói à porta da sua pastelaria, empresa não muito lucrativa, - teve várias lojas, em variados ramos e em diferentes locais da cidade -, perscrutando em toda a linha o movimento da Rua Direita, com um pensamento dominante: isto está uma pasmaceira; hoje não acontece mesmo nada. Será que hoje não acontece nada? Enquanto este pensamento se entrecruzava com outros da mais diversa índole, surge um dos amigos do dia-a-dia, e das tertúlias, quase vizinho relativamente à pastelaria "Rico Folhado". Tratava-se, nada mais, nada menos, que Vespasiano Lampaça Paranta Júnior, o Director do jornal A Voz do Povo, homem alto, calmo, de visceral bonomia, em franco contraste com o nosso Saramita, a quem os caluniadores atribuíam, também, a edição de um outro jornal: “A Rijeza”, que alguma memória recorda um Editorial, não sei se o primeiro, não sei se o último: “Gatunos, Polícias e Azeite!... O Director do Voz do Povo chegava com o olhar apagado de um homem descontente consigo e disse ao aproximar-se de Saramita: “Mesquita, só me acontecem desgraças; acidentes é cá comigo”. “É assim tão bicudo o problema?" - pergunta Saramita calmamente, ao mesmo tempo que antevê aqui um lenitivo para a quietude dos acontecimentos -. “Imagina só!: tenho que imprimir o jornal e não consigo encontrar petróleo nesta cidade para fazer accionar a impressora.” “A imaginação não te esquenta o cérebro ó amigo!" – retorquiu Saramita – “Então não tens todos esses candeeiros da iluminação da cidade para colher petróleo?” - enquanto falava, Saramita, enriquecia a sugestão com um gesto manual, que exercita os quatro dedos da mão direita, para os dextros, em movimento sequencial estudado e ensaiado desde o neolítico pelo homo sapiens, para explicitar com propriedade a acção em causa -. “ Quererás dizer: roubar petróleo! O que expõe e compromete pública e seriamente o bom nome e o ofício deste humilde mas honesto cidadão, para além da dificuldade em executar tal... acção!” “ Não sejas atadinho nem tímido, queres que te ajude a ultrapassar a dificuldade em que estás metido, rápida e facilmente? Tens aí quatro patacos à boa vida - que eu cá nem um para mandar tocar ou cego -, e resolvo-te já a encrenca que te atulha até ao pescoço?” “ Não faço a mínima ideia de como vais fazer esse trabalho (...) sem te expores ao enxovalho se por ventura te sais mal da obra. Uma coisa é certa: preciso mais duma lata de petróleo do que pão para a boca, nesta altura; toma lá os quatro patacos.” “ Vês além aqueles quatro garotos?” - Apontou-lhe Saramita ao amigo - “Eu já os ponho a trabalhar.” - Deu um assobio soooviiisst e acenou com a mão para se aproximarem. Os garotos aproximaram-se carregados de interesse e curiosidade e perguntaram: “que quer mou senhor?” “Quereis ganhar quatro patacos?” – perguntou-lhes Saramita - “ Hãn! Queremos” - responderam os garotos com os olhos arregalados enquanto se coçavam por tudo quanto é sítio, digo derme, pela acção que a excitação e a vergonha provocam na pele -. “ Então levai esta lata e trazei-a cheia de petróleo, que ireis gamar” - aqui Saramita chamando já os bois pelos nomes – “a quantos lampiões de iluminação encontrardes até que a lata fique cheia, ála!” E lá foram os garotos à prospecção do petróleo. “Como vês foi fácil!" - explicou Saramita com ar persuasivo - "Espero que te seja igualmente fácil por cá fora o hebdomadário a tempo e horas, com o esperado monstro do dia e bastantes açoites em todos!” “Olha, por falar nisso", - adiantou Vespasiano - "tenho que ir andando enquanto não chega o petróleo: estou atrasadíssimo e sem ter ainda escrito o artigo de fundo, que é meu costume anunciar em caixa alta e, pior ainda, nem sequer pensei o tema, tão preocupado que tenho andado com a escassez do petróleo.” Saramita ficou de repente ensimesmado com esta confidência, a par de que corria o risco de não poder ler algo interessante que lhe valesse uma boa dose de zombaria! "Era só o que faltava" - suspirou Saramita - “Oh Lampaça! nem parece tua: tu que fazes um escrito com a mesma facilidade com que te lamentas! Tu, que sempre dizes ver no presidente um santinho sensaborão, de ar palonço ou fingido, que se agacha ou intimida aos tiques inchados de autoridade do poder central e da polícia politica; o mesmo presidente que lacrimeja ou se exalta com pregadores barrocos, babado com o esplendor da grã-cruz, do pequeno poder pessoal e da liderança musculada e sisuda, até sacripanta; o mesmo que se embrulha em serrubeco cinzento no inverno, e veste terno azul empastado de suor pelo garrote da gravata e o sobreaquecimento pós-prandial…no verão! Amigo! Tens hoje a carola pouco arejada! Que melhor mote poderás tu ter para o artigo que dar porrada na Câmara Municipal por falta de luz nos candeeiros!”