sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

De Hércules à Pequena Sereia. Poema pós homérico.

De Hércules à Pequena Sereia. Poema pós homérico.
Sempre à procura da Ítaca. Da minha Ítaca; que também será vossa, se navegardes os mesmos caminhos venosos da serenidade sentida e partilhada. A cada um a sua Ítaca. Caminhos de medo na aresta do presente futuro. O fio da navalha, aqui transfigurado num simples madeiro, produto de algum espúrio naufrágio. Náufrago e esperança vestindo a mesma cumplicidade, unidos ao sabor dos elementos, à procura da Ítaca. À tona. Aerobicamente Com todos os receptores dérmicos atentos, informativos, impermeáveis à mistificação. Prouvera ao Céu que à condição humana fosse recuperado o estatuto de anfíbio, a fazer jus à teoria da Senhora Elaine Morgan: a nossa origem reporta-se ao estado aquático. Talvez a premonição de Tales de Mileto. E lá no fundo dos mares, onde vive o velho Proteu; aproveitar tudo o que de empolgante, fantástico, maravilhoso, tranquilo, existe nessas profundezas oceânicas! Ali a meio do Atlântico, onde alguns querem encontrar a perdida Atlântida, na vizinhança dos Açores, pela proximidade, a cordilheira que se aquece e aquece, e deslumbra pela majestosidade singular. A água é o símbolo da Vida. Suporta-a e protege-a. Lava os excessos da alma, do corpo e da natureza. Purifica-nos em purgas. Leva-nos a viajar. Mas também nos julga; levando-nos a escorregar ou a meter o pé… na poça. O subaquático é surpreendente, mágico, maravilhoso até narcótico. Mas é inacessível, por enquanto, pelo menos aos de vulgar condição. Por isso a condição humana é condicionada e condicionante. Os monstros desapareceram. Os seres sobrenaturais desapareceram. Os deuses desapareceram. As fábulas, as fantasias, os fantasmas já não assustam, não incomodam, e não prendem a atenção. Abunda o virtual. As fulgurações vão perdendo o brilho. A mitologia saiu do imaginário. Os números ganharam. Mesmo os Arquétipos são só já meros e curiosos referenciais históricos. Tudo se resume à cibertecnologia; ao mundo das “pall station”. Por isso o grande desafio, o tudo ou nada, “make or brake”, o último desafio é viajar, é descobrir o centro do vulcão. É a terapia génica. Mas, para mim! Para mim a Ítaca! Para alguns “ma blast”; para outros “iokáli”; para outros, ainda, o esconderijo sagrado; a fonte das virtudes, o elixir da longa vida, a pedra filosofal. Para mim, a Ítaca. É uma voz que me toca. Nem sempre sei donde vem, se do remanso de um rio, se da calmaria de um lago, se da inspiração do mar, se da transcendência do cosmos, se da doçura dum sorriso, se da carícia da aragem, se do aroma dos espaços verdes, se do todo fragrante da natureza, se dum vinho retemperante, se do calor da amizade, se da felicidade sentida. Sei, isso sim, que sempre que a oportunidade me oferece a imagem da Ítaca, apaixono-me de imediato. Inevitavelmente Naturalmente. Visceralmente. Irresistivelmente. Acicata-me a militância poética. Dias e dias em estado narcótico, guardo-a no subconsciente. Noites e noites de intenso labor onírico.
Ontem a Ítaca estava lá. Esteve lá. Ouvi, também, a sua voz ecoar, sonora e firme, dominando o murmúrio do mar!
Ao tempo esbarrei com ela, de manhã, à tarde, à noite, ao dobrar da esquina.
Corri a apanhá-la na última estação da tarde.
Faziam-se anunciar os dias míopes do inverno, vestidos de um sol de riso magoado.
Restava pouco tempo de luz crepuscular para que o grande braseiro cumprisse o ritual e circadiano mergulho no horizonte distante.
Lá, onde já não tem lugar o branco marulhar da ressaca das águas oceânicas, e se define uma linha onde se distinguem silhuetas de navios que deixam escapar pequenas nuvens de fumo que formam figuras de corações engrinaldados.
De lá partiu Ulisses em jangada miserável, qual sombra daquele belo barco à vela, que dez anos o levara à conquista de Tróia. Que uma ânfora guarda, ciosa, em recordação testemunhal.
De lá partiu no derradeiro alvorecer, de regresso, rumo à Ítaca.
Iria abraçar de novo Penélope, que no gineceu se envolvia por um murmúrio de ais contidos e de desejos de amor por Ulisses, sem se deixar esmorecer, dando-se a sublimar um arrastado sofrer e penoso cansaço. Um sentir gozado, que só os femininos e delicados corações, quando querem, o conseguem.
Lá vi o redondo lumaréu afundar-se em lento e pungente adeus, acenando com gesto provocador e insinuante as paixões da noite, que a lua irá incendiar.
Hércules, o farol, cumpria a sua infatigável e oportuna missão de assegurar em rodopio cadenciado o rosto da noite. Na sua acção precisa e humanitária piscava com frequência regular e exacta aquele olhito cintilante de cristal de neve, despertando atenção a todo aquele que lhe estivesse ao alcance
Queria vê-la e saboreá-la por mais tempo, até ao limiar da imagem vaga. No limiar do etéreo e do distante.
Queria que efémera, evanescente e ligeira se transformasse em coisa de constância e substância.
Fernando ajuda-me! Empresta-me por breves instantes a tua “Ode Marítima”, para que este paquete leve um rumo ponteiro. Já que, desafio os deuses ou os exegetas da tua obra, seria esta navegação para ti mais que inebriante. Tu, que do Cais das Colunas olhaste esse rio, o mesmo que acolheu Ulisses, e cismaste indeterminadamente com viagens marítimas na imensidade imensa do mar imenso, com a alma ébria a transbordar de mar. Que, ouvias o assobio dos ventos nas gáveas altas, procurando mitigar a penosa violência de um pensamento filosófico e irrequieto, que te flagelava incessantemente os neurónios e te roía as entranhas com angústias. Aquietado, só, pelo deslizar sereno e elegante de um qualquer paquete, que o êxtase te levava à confissão:”...um navio será sempre belo, só porque é um navio”. Obrigado Fernando. Até sempre!
Naquela estadia, e nesta estadia, como venho segredando, senti a minha nau levar-me à Ítaca. Não sei se alguém mais a sentiu ou a tocou. A minha condição de forasteiro tornara-me mais perspicaz, mais sensível e desperto à descoberta da sua presença. Contrastando vivamente com quem já lá chegou, ou de lá nunca saiu. Tanta paixão, eterna paixão, renovada paixão. Tantas paixões, repetidas paixões, todas elas paixões. Mesmo assim poucas, mas verdadeiras paixões. Sentimento que me esforço por não banalizar, hipotecar ou passar procuração a um deus menor. Reclamo-lhe um Deus maior, único, absoluto.
Resta-me o regresso à Ítaca. É Ela o meu mito, a minha fé, o meu destino, o meu referencial. O símbolo, o racional. É tudo. É a Ítaca. A minha Ítaca. Está lá. A Atlântida não está. É ficção. “Descobrem-se Atlântidas no fundo do prato enquanto servimos a sopa de mãos erguidas aos deuses caducos”. Só a Ítaca existe. De lá parti à aventura. Sem destino. Sem o destino. É à Ítaca que quero regressar. Talvez náufrago, talvez sozinho, talvez indigente, talvez debilitado, mas chegarei à Ítaca. Um dia chegarei à minha Ítaca! Chegarei, algum dia, à Ítaca?

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Tempo de castanhas

Larry King, entrincheirado nos seus óculos “sextavados”, esticava os suspensórios e fazia peito, comentando em Galego, recentemente assimilado, ao seu interlocutor Camilo Cela, este, sim, galego:
- Daste conta que tudo isto cambiou, mozo? Ao que Cela respondeu:
- Desde o inbento da Roda, munta cousa cambiou, mas hai algûas cousas que non. Mas tudo bai ibluindo, tudo bai ibluindo!

«No dia de São Martinho, lume, castanhas e vinho.»
O mês de Novembro tem, como as restantes onze divisões do Calendário Gregoriano, os seus encantos, as suas especificidades, os seus rituais, as suas lembranças: as castanhas, o São Martinho, a marcha para o 1º de Dezembro. O tempo, como a vida, não para, ainda que se renove a cada ciclo. É neste andar em frente que as gerações e os hábitos vão criando pontos de referência: ora de progresso, ora de retrocesso, sem que, todavia, algo fique como dantes.
Por aqui e por ali, encontramos gerações em conflito…sempre na senda da reedição da insanável e falsa querela dos «antigos» e dos «modernos».
Coisas tão simples e tão naturais, tantas vezes tratadas com escárnio e mal dizer, ao invés de encaradas com toda a singeleza, sem apupos nem tabus, até porque o proibido desafia os fornicoques.
E, aos «provectos», vão ficando para trás alguns prazeres e alguns hábitos, que, por razões de trajectória racional, prescreveram, ou por essas vias vão, a caminho de, em breve, lhes ser outorgado o estatuto de peças de museu. Outros comportamentos serão digeridos na voragem do tempo, ou postos ao jeito de serem cobertos pela poeira que nele paira.
Nesta onda de arrumação, é incontornável o encontro com o intemporal, com o risível, com o catártico, com o fazedor de lágrimas de alegria, a fio, o flato: Fautor do bom humor, às carradas, que faz chorar as pedras da calçada e ressuscita mortos de riso; e os vivos, de olhos esbugalhados e papudos que nem de chamorro, rendidos incondicionalmente à hilaridade, até dizer: «basta, que me matam...de riso!»
Pum! O grande pedagogo de "maus fígados"; o bálsamo das alegrias tristes. Solta o tigre, Artur!...
Peido! O instrumento de todas as afinações e todos os timbres; o som para todos os gostos (e alguns desgostos, sempre e quando esteja patente a bipolaridade Norte-Sul, ou haja elementos afectos a tribos diferentes, nomeadamente: Gregos-Troianos; Gauleses-Romanos, Israelitas-Palestinianos, etc!).
Traque! "Virtuosi" e acrobata, que domina prodigiosamente todas as escalas.
Bufa! A grande animadora das noites, mais ou menos opíparas, mais ou menos a seco.
A farpa na temática oportuna, iconoclasta: ponto final na conversa.
O rater que marca presença, não obstante meteórica, que deixa selos e rastos indeléveis de alegria -..."para outros tristezas são: o carteiro não tem culpa"...-.
Estrelote, o grande companheiro de viagens.
Um deixar ir, um apelo e uma expressão à interioridade, cantada com o coração... de sonoridade não brilhante, não dolente; por vezes estridente; um cântico da verdade e do sentimento; capaz de chamar a atenção, ainda que de sonoridade pobre, indefinida, de mensagem oboé, ou de instrumento de palheta dupla, fagote ou tuba, para que a mensagem passe (saia...). O facto de se apelar à necessidade de afinação e moderação na afinação daquele instrumento (oboé) compreende-se, pois se trata de um instrumento que aflora "as soleiras da melodia e da música, ainda que de uma forma hesitante e elementar".
Petardo, a balada para todo o cruzeiro. Desde Atenas, em arrogante diálogo com Aristóteles em plena Acrópole, até às Américas, onde os aprendizes de Lucky Luke se rendiam contemplativos, ao fumo que se esgueirava displicentemente do cano do revólver, exultando com espanto, em uníssono de jogral: «Beans!»
Trombeta de entoação em modo Lídio ou Jónio, causadora de alguma preocupação, no próprio e no meio envolvente, mas prazenteira.
Peidão – como afirma o nosso amigo João radicado no Brasil -, mais que quadro de honra, é flato que subiu ao pódio!...

Ouçam, ainda não é tempo de tapar o nariz e remexer o pote: tempo sim para algumas referências e contribuições culturais, em muito casos, tributos à história e à arte, pelo menos pelos vultos que dão rosto à expressão corporal e fisiológica.
Quem cortou o queijo? – Uma história cultural do peido, que o livro de Jim Dawson, Ten Speed Press, 1999, nos presenteia e que vale a pena recomendar a todo o praticante e a todo o ignorante, ou quem procure actualizações ou mestrado no estado da arte.
A Europa, como que em devoção à sua história turbulenta, foi-lhe palco de inúmeras exibições.
Por cá, Jorge Nuno, protege-se com velas (que acende em alguns eventos) e requintado incenso para modificar e suavizar o som e ambiente pós prandial: um toque de mestre.
O "coronel", por um triz que não abatia, sem dó nem piedade, o pobre cão que se acoitava debaixo da mesa enquanto o ilustre castrense se permitia, ao compasso de opulento jantar, a convite do sargento beneficiário de algumas graças, libertar frequentes e sonoras ventosidades, compaginadas com a qualidade e o bem-estar daquele momento de convívio.
Lastimo, consciente de que nem tudo são rosas, que aos praticantes Anglo-saxões, que são os maiores «Petómanos» – leia-se «peidões» - do francês «pethomme» - à superfície do nosso planeta, seguidos dos ianquis, não se lhes tenha sido concedida a oportunidade nobiliárquica de "Sir". «Cá se fazem, cá se cagam!» - em usufruto do benefício da circunstância de o flato não constituir crime que esteja tipificado em qualquer dos Ordenamentos Jurídicos do Mundo Civilizado, conhecidos. Convenhamos que aqui, como infelizmente em qualquer sociedade, também há riso cínico e atmosfera de podridão; enfim se a carne não é boa não podemos esperar milagres que da alma venham.
E se houver combate, que seja de luva branca, com a arbitragem de Ramalho Ortigão! Como não se trata de duelo, aliás, proibido por lei, e bem, recorrerei ao simbolismo cáustico e vivo, com que o lembrado escritor fulminava, à época, a mentalidade dos contemporâneos... «Quem primeiro se queixa, é o que larga a ameixa!»

A Península Ibérica está, também, recheada de acontecimentos de flatulência, e escatologia, com vísceras ó tio ó tio, que, de tantos, ficar-lhe-á reservado espaço e tempo para uma próxima oportunidade. Tantos e tão talentosos «Pethommes» mereciam uma antologia condigna.
Fica, por fim, a referência breve a um mauzão horrível, que estraga esta fotografia: Hitler! Reza a história, que este condutor de camelos, conhecido por Adolfo, tinha problemas com as vísceras, por soltar gases que nem vulcões, que o incomodavam e irritavam até às campânulas da morte, bem como às pessoas em seu redor; nem a Gestapo aguentava muito tempo no bunker, onde entrava com os panhuelos ensopados de água de colónia para mitigar o sacrifício - testemunharam pessoas muito ligadas ao ditador. Só Eva suportava, ao que parece com prazer, a atmosfera bucólica do bunker. Supõe-se que tenham sido os iogurtes de testículos de touro, entre outros complexos vitamínicos que o Fhurer emborcava para apurar a sua (dele) raça, que lhe provocassem alegrias tristes, mesmo cólicas, no canal do palóio, tão fortes que dava berros que nem jumenta no cio!...
Nem mesmo o esconjuro "Vade retro Satanás prás pedras cagadeiras!", do Padre Fontes, e a queimada redentora de noite de bruxas seriam capazes de aplacar a ira das entranhas do afilhado da Krupps, elevando o salmo: ..."Sapos e bruxas, mouchos e crujas, demonhos, trasgos e dianhos, spíritos das eneboadas beigas... ". Casa de Satanás e Belzebu, fogo dos cadáveres ardentes. Corpos mutilados de indescentes, Peidos de cus infernais. Bramido do mar bravo"...

O que lá vai, lá vai!...

E há sempre alguém que pergunta: e o "bean" de Fafe?, e o "bean" de Madrid?..da Póvoa de Varzim?..., da Acrópole?..., de Verin?..., do Liceu?..., do Coliseu?..., do teatro?..., do cinema?..., do matadouro, do carocha do Lacerda, do...etc, etc, etc...
Prometo dar-vos um exemplar... de obra acabada.
E bom; quem segue, segue; quem está, está!
Afinal de que tratamos?! Tão só render homenagem a Dali, o Salvador!
"Pet'homme" assumido apesar de, injustamente, ser só conhecido na pintura onde chegou à categoria de “bomba”, será provavelmente o maior vulto, pós Renascença, no conhecimento e divulgação de tal fenómeno.
Possuidor de uma vasta e invejável biblioteca do foro, dedicou-se com toda a honestidade, isenção, respeito, lealdade e entusiasmo à "Pet'ologie". Tratou a flatulência por tu, sem tabus, sem escárnio e maldizer, sem ódio, sem ostracismo: como deve de ser. É pois, da mais elementar justiça, para além de tão alto galardão, estar entre os mais distintos da confraria, pela entrega apaixonada e materialmente desinteressada, a tão social evento.
A sua reputação chegou, e repousa hoje no museu em Palermo, criado expressamente para albergar todo o espólio e história do ensino de bem utilizar a técnica flatológica em sociedade. Aí tem guarida - como merecida recompensa - quem, tanto e tão alto deu...o seu melhor, contribuindo com pompa e circunstancia para o estado da arte.
E aqui também cabe perguntar: aquele (a) que nunca se deixou ir, que atire a primeira pedra!

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Vade in Santos

Feira dos Santos
A Feira dos Santos, em Chaves, pode considerar-se um ritual de mercado e lazer que sobrevive e recusa perder-se no esquecimento e ceder à usurpação toda poderosa dos barraqueiros latifundiários É, a Feira, cunho indelével de toda a árvore genealógica que enraíza na Cidade Linda a quem “nós queremos tanto”, e Vespasiano terá chamado “Aquae Flaviae”.
Foi, e rogamos que seja, o mercado de referência do Concelho, que aguça o apetite e a curiosidade aos concelhos vizinhos. Ano após ano, tem sido a feira mais importante.
O casamento de Feira com Santos, não se sabe se foi por amor ou de conveniência. Certamente vários factores terão contribuído para tal certame. Não vou meter-me por essas veredas, que deixo para um historiador dedicado a estas investigações. A descrição da Feira dos Santos encontra-se profusamente documentada em miríades de artigos, espalhados pelos quatro cantos do mundo.
Não me livro, contudo, da tentação de testemunhar que nessa altura do ano o grosso dos trabalhos agrícolas está (ou estava) feito, incluindo a apanha da castanha “gota” (que bilhó!...), ficando apenas para Dezembro a da azeitona, uma e outra, de execução mais suave ao arcabouço dos que viviam e vivem ainda da jeira.
Os habitantes das aldeias preparam-se (ou preparavam-se), pois, para o duro Inverno que se aproxima (ou aproximava), longo e penoso. Alguma razão estará subjacente ao dito: nove meses de inverno e três de inferno.
Não menos importante é (ou era) o facto de alguns dos rendimentos dos trabalhos agrícolas estarem já nos bolsos, a enchumaçar as calças ou colete, (no travesseiro, cofre ou mesmo empedrados): nunca na Banca.
Outros proventos esperam-se (esperavam-se) das trocas e vendas de gado e lã, as mais representativas.
Chegava, também, a oportunidade de renovar a roupa de vestir e prover o corpo, de alguns agasalhos: samarra, capote, lenço tabaqueiro, botas e socos; e o lar, de provisões e utensílios domésticos esbotenados, ou em falta, bem como acompanhar alguma modernice, entenda-se esta, também, como a evolução previsível das “coisas”.
E, já agora, para os graúdos, relaxar…um pouco de regabofe e de diversão… após tantos e penosos trabalhos ao longo do ano, mitigados apenas por uma ou outra romaria, aqui e ali, no pico do verão. Para os miúdos, um soltar de amarras, com uma lufada de pândega e diversão… um aliviar de tensões no carrancudo início das aulas.
"Antes o poço da morte que tal sorte"! - Aí está ele, o Poço da Morte!!! - bem como uma ampla panóplia de apelativos divertimentos, avidamente procurados por almas sedentas de folguedo e agitação, fruto do acicate da adrenalina que esta circunstancia põe em circulação.

Mergulhado nesta aguarela humana, queimava sua existência o autor da deliciosa picardia que aqui tem lembrança - Saramita, de alcunha, Mesquita de registo – protagonista ilustre de outras façanhas já, neste espaço, relatadas. Personagem evocado pelos seus dotes imaginativos, mais dado ao conhecimento autodidacta e ao raciocínio rápido, que afoito para o enriquecimento material; considerado até um agente desastroso neste ramal.
Filho de um deus-menor, Mesquita terá pertencido ao clã dos pequenos heróis que recorria reiteradamente à imaginação para aguentar a existência, desafiando recorrentemente o "statu quo". Quase sempre aprendendo por ensaios e erros, quase sempre granjeando saber de “experiência feito” e exaltando, com frequência, a bipolaridade existencial com elevada emoção, pelo que fez fortuna de ódios e paixões: traste ou vilão para uns, herói ou ídolo para outros.

Aconteceu, por altura da Feira dos Santos. Saramita acordou para o negócio, empurrado, talvez, por qualquer pesadelo financeiro que o tenha assolado durante a noite. Um aliciante plano para mitigar, quiçá, a falência em curso, afigurava-se-lhe fiável e eficaz ao seu espírito divertido, ensaísta e inovador. Com a ideia a ecoar repercutidamente no cérebro, procurou Castelo, o amigo e conselheiro indefectível, a quem explicou o plano que tinha em mente bem como os respectivos fundamentos. A colaboração de Castelo era imprescindível pela relação de extrema confiança existente entre ambos, que fazia deles amigos do peito, carne com carne.
Consistia o plano negocial na criação de uma tenda de barraca, orientada em determinado sentido espacial. Uma porta de entrada, outra de saída. O interior vazio e escuro, pelo que também não havia espelhos ou outras "ratoeiras". Nem sequer ruídos, ou risos, a imitar fosse o que fosse; isto é, nem terror de cagar calças, nem riso de as molhar.
Em suma, um pequeno percurso em ziguezague, que aumentava a expectativa e a ilusão temporal e espacial do local.
O visitante entrava assim por uma porta e saía, mais à frente, por outra.
Quase me esquecia do mais importante, pelo menos do ponto de vista financeiro: a existência de uma pequena bilheteira contígua à tenda onde se acomodaria o amigo de Saramita, dedicado à venda de bilhetes que permitiriam ao interessado visitante o prazer da aventura por um túnel desconhecido e supostamente cheio de surpresas. A esta atmosfera juntar-se-ia uma seta de néon, pouco sofisticada, a incentivar a entrada.
Mesquita terá dito então ao amigo: “Castelo, este ano vamo-nos encher dele!... Vais ver! Os Bertoldos das aldeias vão cair como moscas. Faz as contas, a um pataco cada um, Feira dos Santos, hã!”.
Castelo estava habituado às tentadoras materializações das fantasias de Saramita, homem de sete ofícios e outras tantas atitudes empresariais, pelo que prenunciou, “é tiro e queda”! Tinha, Castelo, no entanto, algumas dúvidas. Não estivesse ele na qualidade de colaborador e co-responsável directo daquela supostamente lucrativa diversão, perguntou: “Óh Mesquita, como é que tu, e eu..., nos vamos safar de umas boas lombeiradas logo que os primeiros visitantes, se derem conta de que foram completamente burlados?”.
“Aí é que tu te enganas”, disse Saramita.
“Não estás a ver bem a situação”.
“Como assim?”, perguntou Castelo.
“Simples”, - retorquiu Mesquita,
“Imagina só! … os papalvos entram por uma porta, dão umas voltas lá dentro sem ver nada, saem pela outra porta e estão cá fora, na Feira... Reacção imediata: filhos da p..., que bem me levaram estes c...os! Claro que até sentem frio na espinha, “engaranhados” até ao arrepio. Mais, a reacção não é só de frustração e de revolta, mas pior: é também uma vontade quase irreprimível de ajuste de contas e de limpar a afronta, ou o sebo! Mas não o vão fazer! Porquê? Porque maior enxovalho adviria se dessem a conhecer o papel de tanso a que esse conto do vigário os tinha levado. Então, vão chamar e sugerir aos amigos ou "outros" que entrem e sintam na pele o mesmo logro. E o negócio continua. “Está bem”, - anuiu Castelo - "bota prà blusa!. "Com o mal dos outros posso eu bem!"

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Poema Sineiro

Poema Sineiro

Pergunta: alto está, alto mora. Todos o vêm e ninguém o adora. O que é?
Resposta: o sino!

Esfrego os olhos, ensonados e mal abertos pelo omnipresente despertador, de ruído execrável, cúmplice do despótico relógio de ponto, traidor e carrasco do lusitano galo, das medievais campaínhas de bois e cabras, da musicalidade do regresso ao redil, do toque das Santíssimas Trindades.
Ah! Os sinos! O sino da aldeia. Das aldeias. Das festas. Das procissões. Dos baptizados. Das novenas. Da Páscoa. Das núpcias (que agora se ficam pelos foguetes: a maior foguetório, maior a abastança!).
Também tem maldizentes e ciumentos chocalhos! "Burro como um sino!?"
Corruptelas satíricas ou mimos paternalistas: sino versus Alcino!
O toque a finados. O sino podia evocar o toque a rebate para avisar a aldeia de que algo importante ia ocorrer ou em vias disso. Na aldeia sabia-se se havia fogo pelo toque do sino. Dlong! dlin! dling! Dlong!
O Coelho, sacristão, que tão bem tocava o sino, fazendo-o repicar em dias festivos, com a mesma mestria com que o aclamava pregoeiro enfático da Missa.
Sino de presença obrigatória em actos solenes que tivessem um templo por testemunha.
“Por quem os sinos dobram (!?)”.
O tilintar incessante dos sinos das Renas em período de Natal (hoje dos supermercados com arranque temporão a cada Novembro).
O som nostálgico da meninice.
Os sinos tocavam três vezes para o início do trabalho da apanha do cacau em S. Tomé e Príncipe.
Sinos no final da abertura 1812, de Tchekovsky.
O sineiro da armada. O sino, único com estatuto de corda, a bordo das embarcações.
O carrilhão de Mafra que organiza os sinos em assembleia. A tonalidade menor que lhe dá aquela sonoridade doce.
Os sinos da cena da coroação de Boris, de Boris Gudunov de Mussorsky;
Os sinos que inspiraram a sexta gravação que Mário, o carteiro - de Pablo Neruda -, fez no campanário da Igreja local...!
Sinos dolentes que dobram. Dobram na sinfonia fantástica de Berlioz.
Os sinos que enriquecem o coro infantil no 5º andamento da terceira sinfonia de Malher: bimm, bamm, bimm, bamm...
1494: a data daquele sino enorme transportado para terra, a custo, em carro puxado por junta de bois, e um bom punhado de homens, aquando da segunda viagem de Colombo “às Índias Ocidentais”!
Sinos na Sinfonia do Requiem (da guerra) de Benjamin Britten.
O Sino da Torre da Paz em Benfeita, aldeia do concelho de Arganil tem a tradição de comemorar, o fim da II Guerra Mundial, tocando 1620 badaladas.
“Tocam os sinos da nossa aldeia, vai passar a procissão”, quem não se lembra da talentosa voz que o Villaret emprestou a este poema?
Sinos no final da segunda sinfonia de Gustav Malher.
Outros tantos compositores que mergulharam nas campânulas destes idiofones, quais sibilas composicionais, e nelas colheram engenho e arte para belas obras.
Sinos que anunciavam as guerras e que eram fundidos para canhão.
De plumitivo atento se lê: Os de Arcadiços queixam-se ainda de que “os sinos da sua capela lhes foram roubados para Travancas e até hoje ainda não voltaram”...
Rua do sino em aldeia de Barroso.
«Os sinos de Maçaínhas cantavam assim: tem lêndeas, tem lêndeas, e logo os da Corujeira diziam: se tem tira-lhas, se tem tira-lhas. Os dos Trinta perguntavam: com quê? Com quê?, e os de Vale de Estrela diziam, com a sua voz grave, com o martelão, com o martelão!».
“Um mestre é como um sino. Se alguém der apenas um leve toque, tudo que escutará é uma leve vibração. Mas se a mesma pessoa sacudir com vontade terá um ressonar bem alto, que vai abalar até o fundo da sua alma. Perguntem com coragem, e só parem quando obtiverem a resposta que procuram”.

Agora, num tempo em que o relógio/cronómetro tatua a condição humana e que está presente em quase todas as ferramentas de trabalho, o sino do campanário deixou de convidar à reflexão introspectiva, à exortação ao silêncio, à vida em comunhão com o outro e com Deus. Não mais se ouvirá a trompa do anjo anunciador do sagrado, já que foi trocada por ruídos electrificados e ampliados por campânulas, na missão pura e simples de contar o tempo, repetida à exaustão, ridícula e gratuita, em registo de feira, em franca concorrência profana com o pregoeiro do peixe, sem qualquer sentido ou apelo às leis da sociabilidade: sem memorialística. Sinais do tempo. Poluição sonora numa réstia de tempo e espaço em que o verdadeiro relógio é o sol e o sino o seu núncio.

Ó Sino da minha Aldeia
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem som de repetida.
Por mais que tanjas perto
Quando passo, passo errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Fernando Pessoa

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Cala o bico

Cala o bico
Ora cá está um bom assunto em que a dicotomia, a dualidade ou a teoria dos contrários não têm cabimento, exemplifico: não há vinhos maus por oposição aos bons; há vinhos bons e menos bons! Tentando burilar o conceito: res bona, bene tibii!
E, para ajudar quem só veja trevas neste estilo narrativo, direi que é mais um olhar relâmpago e romântico sobre pequenos nadas da vida, que resgata ao esquecimento personagens castiças, que à sua época tiveram algum reconhecimento ou mesmo notoriedade, mas que, com a passagem do tempo, se afogaram num mar de coisas novas e diferentes, a que chamam esquecimento, ficando os seus nomes e gestas guardados única e dispersamente na memória de familiares ou amigos e respectivos descendentes, e no eco de dizeres.
Adiante:
As estórias de amantes de vinho, de que se destacam os bebericas, e a história da cultura do vinho, bem como a ciência enológica, têm sido feitas de avanços e recuos, ensaios e erros, e não só por "documentos, edifícios e objectos".
Não vai aqui o soldado afrontar o general e falar de Homero, da acção dos Romanos ou dos Tartessos, ou dos Franceses, do (enguiçado) Barão de Forester e/ou da D. Antónia, do País das uvas, ou outros que difundiram o culto e a cultura do vinho.
Poderiamos evocar, João Torrão, de Miranda (do Douro), quem, naquele tempo, teve as carícias e o direito a rei do mundo outorgados por seu avô. Eu também usufruí dessas prerrogativas, a pleno peito. O pai de João Torrão foi um micro empresário de taberna na mesma localidade, homem comedido, organizado, de poucas falas: serviço é serviço, conhaque é conhaque. Também o avô de João Torrão, procurou viver o seu dia-a-dia com alegria, de preferência sem altos nem baixos, nem sobressaltos. Era amigo de Avelino do Palancar (Quintarola junto a Miranda do Douro) que vendeu a vinha para comparar o lagar, tanto gostava dele; amizade que cultivou com prazer e dedicação quase doentios, tal a sua obsessão pelo Amigo.
Poderíamos ficar por aqui, presos à história da “palhinha de centeio”. Mas iremos mais longe, antes que nos calem o bico.

Recordemos rapidamente as seguintes designações atribuidas às entidades que historicamente têm vindo a tutelar o sector:

I - A “Junta Nacional do Vinho, pois este organismo de coordenação económica conduziu o sector vitivinícola, durante décadas (1937-1986)” .

II - O “Instituto da Vinha e do Vinho foi criado pelo Decreto Lei Nº 304/86 de 22 de Setembro, sucedeu à Junta Nacional do Vinho e a sua criação teve como principal objectivo adequar a organização corporativa ainda existente aos princípios e regras próprias da organização comum do mercado (OCM). Foi objecto de uma primeira alteração orgânica em 1993, tendo sido posteriormente reestruturado pelo Decreto-Lei nº 99/97 de 26 de Abril.”
III - A “Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica (ASAE) “http://www.asae.pt/”, foi criada por Decreto-Lei nº 237/2005, de 30 de Dezembro.” Todavia, a sua génese remonta a anos que não sei identificar, pormenor que não será relevante para este relato. Mais importante será que, para impedir que o vinho de sabugueiro, de martelo, ou produtor directo entrassem no mercado, fora produzida legislação que define o estatuto do vinho.
Se quisessemos, ainda, continuar a incursão pela história desta temática, não seria aqui descabido falar da filoxera, da lei seca, do Alcapone, de gangsters, que fazem sempre dum bom bouquet para tudo que seja notícia, ou argumento cinematográfico, e da lei do isqueiro, com o seu mote humorístico, ou, até, da lei das rolhas, de má memória. Aqui e ali sempre se achariam pontos de conexão.
Fiquemo-nos pelo produto nacional.
À data dos factos a que esta narrativa se reporta, produzia-se e consumia-se, profusamente, o chamado morangueiro, em prejuízo das restantes castas, mais caras e menos abundantes, nomeadamente, o Vinho dos Mortos, em cuja região produtora se achou a fonte para este relato.
É nessa altura que os fiscais começam a rondar as casas de pasto e as tradicionais tabernas à procura e identificação de quem vendia e consumia tal bebida.
Sempre houve prevaricadores neste mundo!
Sabendo disso, Quintino, empresário de taberna em Boticas - conhecido pela invenção do bordão «Vais e vens sempre a assobiar», fórmula expedita para controlar o filho, nas suas tentações de deitar os beiços à infusa, ou à torneira, de cada vez que ia à pipa - procura a ajuda e o parecer, do prócer juiz da Comarca de Chaves, Dr. Silvino Pires, conhecido por meritíssimo Dr. Lavradas - chancela toponímica, pois nascera na Aldeia de Lavradas, concelho de Boticas - figura a quem eram, ainda, atribuídas outras qualidades como: a astúcia, a bonomia, a graça e a fraternidade.
O meritíssimo aguçou o raciocínio e a douta e experiente argumentação, recordando-se de uma sentença que havia sido lavrada em boa época por déspota pouco escrupuloso, mas que encaixava aqui, com pertinência:
- "Escreva imediatamente abaixo da minha assinatura – ordenava o Príncipe a Rossi:
«Havendo-se a Duquesa Sanseverina lançado de novo aos pés de Sua Alteza, o príncipe permitiu que todas as quintas feiras o culpado tenha…» Assine isso – ordenou o príncipe. – E sobretudo não abra o bico calado, ouça o que ouvir anunciar na vila.”

Graças à informação atempada de Quintino, Dr. Silvino Pires, também ele alistado no batalhão de tintoreiros, ainda que fraco consumidor do produtor directo ou americano, avisou os taberneiros possuidores "do tal" para não satisfazerem os clientes com “tal” pedido, isto é: sempre que lhe pedissem um copo, ou mais (...), de morangueiro, dissessem que não tinham “tal”.
Só que se levantava uma questão bem pertinente, diga-se: “e que fazemos ao vinho? Isso vai ser um enorme prejuízo, até porque é praticamente o único stock que temos, para aviar e aliviar a clientela”.
O Juiz, fino como um alho, se bem pensou melhor disse: "olhai , ides chamar-lhe cala o bico”, como, aliás, tem, muito providencialmente, acontecido.
“Como assim”, perguntavam os taberneiros?:
“Se alguém entrar e perguntar:
- «Tem morangueiro?», dizem:
- «Desse, não! Só cala o bico!»
- «Ahn?»
- «Sim só tenho cala o bico! Deseja?»
- «Bom, serve!» É o que os bebedores pedirão, na ânsia de encanar um calistro”.

Agradeceram o aviso e, daí para a frente, sempre que alguém, em Boticas, entrava com secura e pedia do “tal”…! o taberneiro respondia em voz grave: “cala o bico e que fazenda!”, e aviava-os desse.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Pensamentos soltos, bastantes plágios e... Inherit the wind!

Pensamentos soltos, bastantes plágios e... Inherit the wind!

Desde que JS e ML se embrenham e acorrentam mais e mais na floresta da sétima arte, acorrem-me ideias soltas: ficção, realidade, ciência, polémica, etc., avulso, ou concatenadas...
Esta é uma delas, até de madrugada!
A 25 de Setembro de 1866, nascia o brilhante geneticista estadunidense Thomas Hunt Morgan, cujos notáveis trabalhos sobre a genética da mosca do vinagre, “Drosophila sp”, lhe valeram o Prémio Nobel da Medicina em 1933. Morgan reparou que o padrão de hereditariedade da cor dos olhos acompanhava o do cromossoma X. Sugeriu, então, que o gene da cor dos olhos estava ligado a este cromossoma X. As características de Mendel, que aprendemos no liceu estavam – praticamente – achadas. O mapa genético nascia tímido, mas pronto a crescer. Era o começo da sua elaboração.
Como se sabe o ácido desoxirribonucleico (ADN) é constituído fundamentalmente por quatro bases azotadas.
Diariamente, cada célula do corpo perde espontaneamente cerca de 10.000 bases e muitas células estão, nessa altura, em fase de divisão e, portanto, a copiar o seu ADN -replicação do ADN -. Em cada cópia existe a possibilidade de erro. E além destes erros espontâneos, o ADN está constantemente a ser agredido. Estima-se que 80 a 90 por cento de todos os cancros tenham origem em lesões produzidas por estas agressões ao ADN. Se estas, porque são frequentes, continuassem, as mutações aumentariam exponencialmente a probabilidade de se contrair tumores, não existindo mecanismos celulares capazes de corrigir os erros introduzidos. E, aqui, o optimismo é grande. E crescente.
Já lá vai meio século que o modelo da dupla hélice do ADN, enquanto transformava a linguagem vulgar em terminologia da aristocracia biológica pelo nascer da nova semântica de replicação, transcrição, tradução, expressão, entre muitos outros conceitos, conseguia fazer realidade o pensamento de Freeman Dyson em “Imagined words”: “a ciência é o meu território; mas a ciência-ficção é a paisagem dos meus sonhos”. Porque desses sonhos - reconstrução de velhos mitos - vividos há apenas umas quantas décadas, passou-se à realidade dos territórios da ciência e da técnica dos nossos dias.
O tema é por demais excitante para continuar um pouco mais na incursão pelo inebriante historial do ADN. A estrutura química do ADN em dupla hélice, descrita por James Watson e Francis Crick em 1953, laureados com o Prémio Nobel da Medicina em 1962, conduziu a magníficos resultados capitalizados pela actual bioengenharia, que tem como substrato os métodos do ADN-recombinante. A este propósito ou a talhe de foice, se preferirem, o “alteplase”, por exemplo, um agente trombolítico usado para “dissolver” trombos coronários em situações de enfarte agudo do miocárdio, além de fibrinolítico, é não antigénico, porque é sintetizado pelo ADN-recombinante, tecnologia que “mimetiza” o activador do plasminogénio tecidular normalmente segregado pelas células endoteliais humanas. Isto porque a bioengenharia é capaz de criar novas espécies vegetais e animais, e, inclusivamente quimeras de animais (animais compostos por células de duas ou mais proveniências genéticas diferentes) bem próximas das ficções antigas, isto é, da mitologia clássica, onde a quimera era um animal fabuloso, um misto de leão, serpente e cabra, ou do mito do Minotauro (um monstro que tinha corpo de homem e cabeça de touro). A bioengenharia permite modificar as propriedades e até a forma dos organismos com fins clínicos, agrícolas ou industriais. Digamos, é capaz de proporcionar a terapia génica, incluindo o repto das doenças multigénicas, a manipulação, a pedido, da esterilidade das sementes de plantas, a transferência de núcleos na qual se fundamentam as técnicas de clonagem (allo, Doly! Mééééé ). A vinculação de genes específicos ao padecimento de doenças – o macaco tetra - e a tentativa de aplicação de nova linguagem aos computadores - já não binária, mas apoiada na linguagem do ADN, com um alfabeto de quatro bases - aliadas à conjunção da informática com a genómica, irão gerar novos produtos com aplicações diversas nas áreas da biotecnologia e da medicina.

Relacionada, ainda, com esta questão científica, que preocupa a grande maioria dos viventes, está a senectude, que começa quando principiamos a morrer espontaneamente. Para um biólogo, por exemplo, a senectude implica a ausência ou falência na replicação do AND; a célula não se pode dividir e morre espontaneamente. Os sistemas de transcrição estão alterados, num contexto complexo que talvez seja consequência da biologia geral desta etapa. Neste processo de envelhecimento geral estão patentes uma regeneração lenta, uma transcrição, uma actividade e uma capacidade lentas da célula para produzir proteínas.
Todavia, possuímos enzimas de manutenção que continuamente detectam a ocorrência de defeitos, corrigindo-os. Os mecanismos de reparação e manutenção são espantosamente eficazes. Sabe-se que os genes são trechos do ADN que codificam proteínas específicas. E, apesar de no genoma humano existirem, repito, três mil milhões de pares de bases nos genes, as enzimas de manutenção e reparação apenas não conseguem corrigir falhas de emparelhamento de três bases, o que é algo de espantoso. São capazes de "cortar" o ADN e preencher os espaços incompletos com as bases correctas que faltavam, garantindo-se, assim, a fidelidade das cópias. Já no seu romance “T Zero”, Ítalo Calvino mostra-nos a função que cumpre esta base de dados arrecadada nos assombrosos microchips cromossómicos quando nos conta: “... Contar a minha história e a de Priscila quer dizer em primeiro lugar definir as relações que se estabelecem entre as minhas proteínas e as de Priscila, sejam tomadas separadamente ou no seu todo, dirigidas tanto as minhas como as dela por ácidos nucleicos dispostos em séries idênticas em cada uma das suas células e em cada uma das minhas”; excerto literário que bem poderia recopiar o argumento do chamado “dogma central” da biologia molecular, ao estabelecer que a informação contida no ordenamento dos três mil milhões de unidades químicas no ADN humano - base material dos cromossomas e, portanto, dos genes, suas porções funcionais - se expressa sob a forma de proteínas dotadas das mais variadas funções, tais como: a de catalisadores, de defesa e, até, a de suporte ao amor de Priscila.
O ”dogma central” da biologia molecular é uma presunção de Watson, que atribuía ao ADN, toda a responsabilidade e todo o protagonismo na formação de proteínas, isto é: o ADN faz o ARN produzir proteínas! Secundarizava, pois, o papel do ARN. Veio a descobrir-se, posteriormente, que os retrovírus punham em causa este “dogma”.
Numa representação simbólica em que o cenário fosse uma biblioteca de ADN, aos Cromossomas, a cada filamento de ADN e aos genes poderia fazer-se corresponder as estantes, um livro e os capítulos, respectivamente. Diferem, pois, nas suas dimensões, o que não os impede de repartirem o segredo das suas funções com o ordenamento das suas quatro únicas unidades: as quatro bases de nucleótidos com que se escreve o código genético (adenina-A, guanina-G, timinaT e citosina-C), que formam o seu alfabeto.
Sem formalismos, concedamos: orientar-se dentro da longa molécula de ADN humano à procura dos genes responsáveis por doenças hereditárias é tarefa extremamente complexa. É como visitar um país, melhor, um continente às cegas.
Mais: o gene p53 é aquele que nos últimos anos tem concitado maior atenção. O p53 é um regulador das perturbações da proliferação. Na presença de uma lesão do ADN, ocorre uma estimulação da proteína p53 que diz à célula que morra, ou sintetize mais p21 que, por sua vez, diz à célula que diferencie, ou pare o ciclo celular e a síntese de ADN. Quer dizer: ao promover a sequência da morte celular, isto é, ao obrigar a morrer as células que não consegue reparar - apoptose celular - impede uma proliferação não regulada do ADN.

Para reflexão: "os fumadores com cancro na cavidade oral têm mutação do p53, o mesmo não acontecendo com os não fumadores". Conhecem certamente o epílogo da história clínica do "Homem do Marlboro (...)!
O fumo do tabaco engravida a voz, isto é, torna-a mais grave (!...).
Pois bem. O p53 é o gene supressor tumoral mais mutado em todos os cancros humanos. Cerca de pelo menos 75% dos cancros humanos têm mutação da proteína p53 que desempenha um papel fulcral na homeostase celular porque reconhece as alterações ao nível do ADN.
Continuando, o projecto do genoma humano nunca esteve quieto, mas sim nervoso e pujante. Como o sonho, pula e avança. Já lá vai a célebre experiência com ervilhas, levada a cabo pelo monge austríaco JG Mendel, em 1865, que marca o princípio da genética:” Talvez haja mais alguma coisa do que parece nas ervilhas! Talvez elas contenham instruções ocultas que nem sempre revelam o que dizem; uma ervilha redonda poderia conter escondido em si própria a instrução para as rugas”. Mendel sugeriu que tanto o pólen como o óvulo eram portadores de uma partícula (hoje chamada gene) que continha o código da forma da ervilha ao reproduzir-se.
O virar deste milénio trouxe de bandeja aos caçadores de genes de doenças hereditárias humanas, a possibilidade de disporem oficialmente de um "mapa de estradas" bem sinalizado, com a totalidade dos cromossomas humanos. Contudo, mapear não significa descodificar, e, até conhecermos todas as interacções e implicações deste complexo e admirável mundo novo, “é vindima!...”
Existem muitos genes, e conhecê-los-emos todos. Estaremos, assim, por dentro de um gene a fazer a leitura da sequência do ADN, e, com isso, teremos a certeza do gene implicado na doença. Estamos, pois, cada vez mais perto das fontes da vida. A luta continua! A vida continua! Com ou sem genocracia, com ou sem abutres a afivelar a máscara para o negócio na saúde!...
Em jeito de flash de frescura, pode dizer-se que a era dos estudos de associação de genoma completo (genome-wide association studies [GWAS]) já aqui está, e no curto lapso de 5 anos o seu rendimento prolífico foi extraordinário Os GWAS serão provavelmente um marco da ciência no século XXI, tal como o foi o Projecto Genoma Humano no século XX. O desenho dos GWAS proporciona uma abordagem não enviesada para localizar nos mapas cromossómicos as variantes genéticas de risco frequentes.

As versões cinematográficas – e foram várias - a tratar o tema da evolução biológica e do criacionismo, têm aparecido progressivamente menos nos ecrãs de cinema. Talvez porque estejamos mais tolerantes, mais cordatos e mais francos e empáticos. Pena é, que as referidas versões não tenham sido substituídos por uma crescente discussão dos problemas ambientais e das alterações climatéricas que lhe estão inerentes.

Neste contexto, talvez por gostar muito do actor Spencer Tracy - lembro-me de O Velho e o Mar, entre muitos filmes em que participou -, “Inherit the Wind” é o título de um filme realizado em 1960 nos E.U., que tem por argumento o ditado: quem arruína a sua casa herdará o vento. Baseado num caso real ocorrido em 1925, conhecido por “Monkey Trial”, no qual um professor de ciências de Tennessee, John Scopes fora preso acusado do crime de ter exposto as teorias evolucionistas do Estado. Numa comunidade religiosa Americana, um professor de Ciências é preso por ensinar aos seus alunos a teoria da Evolução das Espécies proposta pelo naturalista Charles Darwin, contrariando uma das leis locais que não permite o ensino de disciplinas opostas ao Criacionismo. Daí, trava-se no tribunal, por meio de dois grandes advogados, interpretados por Spencer Tracy e Fredric March, um grande embate ideológico que envolve toda a comunidade local e seus princípios religiosos. Este filme, aquece a nossa opinião com diálogos pertinentes e perspicazes, e apesar de antigo, mostra-se ainda actual, quando, aqui e ali, vemos alguém no seu fervor religioso protagonizar episódios medievais e intolerantes, movido pelo fanatismo fundamentalista, mesmo com todo o avanço do pensamento tecnológico e a liberdade de expressão que vivemos hoje em dia. Durante o julgamento, que durou onze dias e foi o primeiro a ser transmitido por rádio, a defesa foi impedida pelo juiz de apresentar cientistas como testemunhas em favor da teoria da evolução.
Scopes solicitou deliberadamente a manutenção da prisão, para tentar provar que a lei era injusta. E o veredicto virou causa nacional. O famoso advogado Henry Drummond vai fazer a defesa de Scopes, agora com o nome de Bertram Cates; um político fundamentalista, Matthew Brady, tinha a cargo a parte acusatória. O defensor, protagonizado por Spencer Tracy, disse: “... O progresso nunca foi um tratado. Há que pagar por ele. Às vezes penso num homem por detrás de um espelho que nos diz: muito bem, pode você ter o telefone, mas deverá sacrificar a intimidade, o encanto da distância... Caro Senhor, pode você, conquistar o ar, mas os pássaros perderão a sua magia e as nuvens cheirarão a gasolina!”.

A gasolina cheira o recente desastre ambiental causado pela maré negra no Golfo do México, causado pela explosão da plataforma subaquática Deep Horizont. Mas pode, também, favorecer uma tomada maior de consciência sobre os perigos relacionados com a dependência do petróleo e que nos ajude a dar conta de que temos de deixar os combustíveis fósseis trocando-os pelas alternativas mais amigas do ambiente, bem como repensar a forma como exploramos os oceanos, como afirma Philippe Cousteau, neto do célebre explorador francês Jacques-Yves Cousteau.
Como rebusco de todo o anterior, é de esperar e prevenir que esses cromossomas, carregados de tanta e poderosa magia, que deslumbram todo aquele que tiver a felicidade, como T H Morgan com as moscas-das-frutas, de os surpreender na intimidade dos momentos da divisão celular, maravilha da natureza, nos desvendem e proporcionem mais e mais informação para a cura das doenças e bem-estar físico, e menos pivete a petróleo na bolsa de Nova Iorque, com vendas às empresas farmacêuticas por quantias astronómicas.

Sempre que a expressão audiatur et altera pars, que significa “ouça-se também a outra parte”, tiver eco, o contraditório e "associações sem fins lucrativos, independentes e sem qualquer vínculo político-partidário, que tenham como missão divulgar boas práticas e propor soluções inovadoras, através de contribuições interdisciplinares de mulheres e homens de bem, que acreditam que a liberdade cria espaço para a criatividade, o mérito e a responsabilidade", estaremos no bom caminho, e aptos para não julgar o livro pela capa!

Ponho ponto final parafraseando Freeman Dyson em “Infinito em todas as direcções”, Gradiva, 1990, quando escreve: “Deus não é omnisciente nem omnipotente. Aprende e cresce à medida que o universo se expande. Não pretendo compreender as subtilezas teológicas a que esta doutrina conduz se a analisar em pormenor. Considero-a meramente congenial e consistente com o senso comum científico. Não faço nenhuma distinção clara entre a mente e Deus. Deus é aquilo em que a mente se transforma quando esta passa para além da escala da nossa compreensão”.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Tempo de Festas

São Caetano
Tempo de Festas, vêm aí: a “do” São Caetano (serôdia), da Senhora das Brotas (temporã), da Senhora da Saúde, dos Aflitos, dos Mártires, da Azinheira, da Aparecida, da Libração, do Senhor do Calvário, dos Aflitos; de muitas outras Santas e de não menos Santos e Padroeiros, cada um em seu altar e em sua área de influência. Renovam-se ao ritmo dos solstícios e constituem efemérides que o tempo não consegue apagar, tão gravadas estão na memória de todos, e dos Emigrantes em particular, que, com saudades e lamecha, cultivam regularmente a lembrança de tempos livres, descomprometidos e solidários. O cordeiro, ou cabrito, assado de véspera no forno comunitário, impunha aguardar nervosamente a hora do almoço, e dar-se-ia à prova de predadores esfomeados e sedentos, que, entrincheirados ombro a ombro, se acotovelavam na procura de assento à mesa de toalha de linho imaculada – antes do ritual pantagruélico; da cor da uva preta para o fim do repasto -.
...Zombam da Fé os insensatos, erguem-se em vão contra o Senhor... A missa tinha acabado e a procissão já levava caminho. Andores, estandartes, anjinhos, soldados romanos, pagadores de promessas, povo anónimo; todos pela mesma vereda, comungando do mesmo sentimento religioso. Nas aldeias não havia mirones. Algum, esporádico, só forasteiro.
...Santos Anjos e Arcanjos vinde em nossa companhia, ajudai-nos a louvar a Divina Eucaristia... As melhores colchas pendiam e ornamentavam os peitoris das janelas e das varandas, donde saia uma chuva de flores, arremessada em leque, com intensidade de aguaceiro à passagem do Pálio, ponto alto da procissão; e toda a rua se vestia de pétalas brancas e coloridas, angelical, num asseio bem à altura da solenidade do evento, do rigor dos lustrosos sapatos, da brancura das camisas e das camisetas, das saias plissadas, das meias, dos fatos, lenços, véus, tranças, brilhantina e permanente. A banda filarmónica acompanhava os festeiros, em marcha cadenciada, com o “fiel” da caixa, a executar, sozinho, uma célula métrica: tum, tum, tum, terrrrrum, entrecortada por breves rufos ou, alternativamente, já com todos os executantes, depois de um golpe seco no bombo, e sob a superior direcção do maestro, uma marcha talhada para a solenidade. O Mestre seguia à frente, como manda a “cartilha,” seguido dos instrumentistas, dispostos em formação por colunas. Os sopros, de madeira e de metal, com predomínio destes, levavam a exígua pauta na ponta do instrumento: clarinete e requinta a exigirem vista de pássaro, proporcional à distância da minimizada partitura, para não comprometerem a visão da posição dos dedos e o mecanismo das válvulas. Outros instrumentos que não permitiam tal solução, obrigavam ao recurso engenhoso de dependurar a partitura nas costas da fardamenta do colega da frente, donde pendia engatada por “segurança”. Já para o bombardino a solução era mais fácil! Não havia Sousafone, mas sim a clássica tuba de pistões. Predominava a afinação em brilhante, suponho! E quem tocava carrilhão não ia na procissão! Todos fardados, engravatados, engraxados, luzidios e entregues sem reservas às coisas do Sagrado, com um olhar esguio a resvalar para o profano. Para as refeições, aboletavam-se os músicos pelas várias casas da aldeia aonde haviam chegado de autocarro alugado ou resgatado a algum sucateiro, e posto novamente a rolar, agora reservado ao serviço privado da colectividade filarmónica: Banda... tal...
Era chegada a hora de repor e acumular energias para a tarde e, sobretudo, para a noite que se adivinhava de tarefa dura. A refeição do almoço era a mais fresca e apurada, pelo que fazia um namoro descarado às glândulas salivares que se rendiam babadas a tanta sedução. Sobrava peguilho (ou “cibo”) para dar e vender; mesmo assim “buraca limpa”, como quem diz: comiam como músicos, versão “bandana” (neologismo) de comiam como abades, segundo a crença de cada um. Afinal, quem não é para “o” comer (e beber!...) não é para “o” tocar! O comer e o tocar, andam sempre par a par: refrão esquecido!

Onde é que eu ia? Ah, o sol tinha já chegado ao pico da montanha russa, e, a despertar da sesta, preparava-se para descer. São horas de chiscar a banda. Toca a formar e, nova arruada para anunciar o bailarico da tarde.
A canalha constituía-se em mundo à parte, dando largas à inquietude própria da idade e do acontecimento. Soltos que nem cabritos, estes endiabrados garotos, sempre com o fogo no rabo, a bulir em tudo, davam-se às corridas, para lá e para cá, ziguezagueando por entre os pares dançantes, com ou sem ventoinha de papel na mão, em rotação proporcional ao efeito de Bernoulli, ora às escondidas, ora provocando a atenção dos adultos, ora fugindo deles, ora contribuindo com eles para as revoadas de pó, seguiam a trajectória das canas para as recolher como troféu, tal como cães perdigueiros fossem.
Mas, o licor das festas estava nos arraiais. A noite emprestava um ambiente misterioso e um peito desinibido, bem diferente do ar afectado e acabrunhado que a luz solar desses dias distantes impunha. Um dos momentos altos, vinha com a largada do fogo-de-artifício: a descarga da meia-noite, provavelmente a melhor. A pirotecnia fazia maravilhas, e as delícias de todas as idades. Só as morteiradas ou alguma cana que caia em crânio verde (vulgarmente nos c...nos) de um azarado qualquer, menos atento ou mais lento no raciocínio, parava a mirada posta no firmamento, extasiada com o lacrimejar das series de foguetório, que iluminavam uma vasta área adjacente ao local do baile, gentilmente cedido para o efeito. Em algumas romarias, viam-se, um pouco em jeito devassado, mas avassalador, pares de corpos semeados nos campos à volta, entrelaçados, encontrando-se, depois dos segredinhos, olhares cúmplices e desejos contidos de aproximação, que o decorrer do dia solar tinha proporcionado. Os ainda não encontrados, ou perdidos, os de menor pendor de engate, ou em quem o bicho-caxeiro do cupido trazia desassossegados e ávidos de experimentações, regalavam-se com aquele entregar arrebatador que só um ou outro morteiro faria discretamente arrefecer, tal a fúria indomável da entrega das almas e dos corpos.
Pelo meio destas alegrias e paixões, destes encontros e desencontros, destes amores, desamores ou amuos, uma ou outra escaramuça, vinda do nada, por vezes se vestia de camisa de onze varas. Aí, entrava o desempenho, com brio, do cabo da GNR: normalmente, como diz Ronaldo “Deus não dorme”, seriam premiados sobretudo aqueles que teriam encostado bastas vezes a barriga ao improvisado balcão da tenda dos comes e bebes.
Por vezes, sem saber ler nem escrever, ou ao mínimo melindre, engaliavam-se os arrufados e caia “bordoada” de criar bicho. Mas se a armadilha do acaso picava o clã Gitano, descambava-se numa autêntica guerra campal. Parecia até, que as bengalas, estariam mais vocacionadas e atreitas à curvatura dos lombos, pela capacidade evidente em dolmar, do que dadas exclusivamente às tarefas seculares de apoio em ambulatório. De repente, as coronhas das “mausers” do Grupo Não Recomendado, ameaçavam em jeito de trepano, às vezes praticado, na lógica do disparar primeiro e perguntar depois!
Alguns, dos menos afoitos à dança, iam descendo botão a botão, como quem diz copo a copo, todo o corpo da cintura para cima, deixando deslizar cada vez mais o ventre, o tórax, até ao cotovelo, até à cabeça enlouquecida por um carrossel que não dava tréguas ao desequilíbrio. Um ou outro dava uns passos com o “caneco” na mão, ou, quando mais ousado e desinibido, tentava equilibrá-lo na cabeça, depois de encanadas várias unidades, sob luz pálida e mortiça do carboneto. Era notório um rodopio, um vaivém constante e apressado destes devotos de Baco para locais recatados, onde olhares persecutórios não chegavam – quando a celeridade não os traia – e aí se sentiam aliviados e herdeiros de um paraíso reconfortante, onde, na intimidade, desafogando o prazer da dor, soltavam um suspiro de alívio: háááá!...
Do outro lado do espectro, podia ver-se uma ou outra fila de romeiros, em fila indiana, mãos nos bolsos - de um lado, o dinheiro e o lenço engomado, do outro, algumas carícias apaziguadoras ao furor – enfrentando com impaciência e inquietação, o pudor e a falta de à-vontade que o contacto com a mais “antiga profissão do mundo” e ao ar livre, condicionam. Só quem não sentiu na carne o que esta postura acarreta, em espera impaciente pela vez da satisfação de dever de raça cumprido, poderá estar indiferente. Tudo isto para gáudio de outros mirones que desfrutavam o movimento cadenciado, no início, em crescendo para o final, até aterrarem de vez e satisfeitos, servidos e aliviados na enxerga humana: os cús alvos ao luar do foguetório, exibiam-se em movimento de yo-yo como que suspensos de mola com oscilação vertical de período variável, em curva sinusoidal! O meu amigo João Guimarães (cito o nome por amizade e reconhecimento) lembrou-me com pertinência – e lá sabe porquê… -, que uma vez por outra caía um moleque da árvore mais próxima, ao se acomodar num galho mais fino para melhor assistir o espectáculo...
Enquanto isto, as bandas rivais desunhavam-se num despique frenético, atacando sem tréguas, sem descanso, cada uma com os seus indefectíveis adeptos, para o bem e para o mal, e para levar o ramo, que é como quem diz, arrebatar ou louros do melhor desempenho. Isto se picados no ego, ou quando a cor da camisola corresse o risco de debotar. Outras vezes faziam muita cera e as obras despachavam-nas rapidamente. Por vezes tudo corria bem, na mais santa e pacata harmonia. Uma ou outra vez aparecia um - ou dois - provocadores, armados de concertina a arremedar as filarmónicas, com algum séquito atrás, ora atirando notas de uma qualquer cantiga então na moda na rádio, ou, muitas vezes como suporte melódico de um cantar de quadras ao desafio, intermináveis. O realejo também marcava pontualmente presença na parafernália instrumental destes eventos.
As músicas de andamento lento afugentavam dos coretos, como o diabo da cruz, os pares mais jurássicos, mais "tratados" pelo pingato e mais saturados da omnipresença da "minha" senhora: excepto os adultos single, mancebos espigadotes e galferros na flor da vida, que viam nesta música o bálsamo e a chispa iniciática da felicidade, tentando uma aproximação e uma postura sensual irreprimíveis, não arredando pé dessa fonte musical. Havia melgas, de vozinha maviosa, que à falta de empatia das moças, dançavam uns com (ou contra!) os outros. Era chegado o fim da Festa. E, no fim, todos encartavam o estojo, de regresso a casa. A pé, de autocarro, a cavalo, de carro de praça que nem sardinhas: mais mortos que vivos. Ainda assim os borguistas, cabisbaixos, tristonhos, com olhinhos de carneiro mal morto, resistiam à ideia de que tudo havia terminado, (como dizer?) miragem, tal a nostalgia de festa acabada. A ressaca e o amargor de boca tornavam-se cada vez mais intensos à medida que as gambiarras de luzes, suportadas por postes de madeira, se apagavam de vez, e, os foliões, finalmente regressavam ao pardieiro, que um ilusório e bucólico sentimento mimava de doce lar. O regresso ao piano caseiro representava o esboroar da ilusão intensa e das fantasias confiadas aos últimos dias, e a desilusão não menos dramática de um horizonte distante de 365 dias, quase todos “pica boi”.
Adentrando-se pelo resto da madrugada, o desassossego das entranhas manifestava-se em momentos de alegrias tristes, com gómitos e escorlas, muito papel higiénico (ou outros recursos de higiene íntima : seixos, papel de embrulho, erva...), e fortes doses de laranjada para acalmar o animal!
Quem não tem bois lavra antes, ou depois!

domingo, 30 de maio de 2010

Professor Pedro Zarco Gutiérrez. In Memoriam

Professor Pedro Zarco Gutiérrez. In Memoriam
… con toda la mar detras…

Sol menino que desperta
Tela nua, núcleo alado;
O herói da bela gesta,
Apocalipse bem nado.

Esboça, molda, retoca;
Harmonia, elixir, alquimia;
Fala, Picasso ou Lorca,
É elogio à magia.

Satélite da esp’rança
Para órbita da vida,
Timoneiro que não cansa
Pela noite ofendida.

Irrompe já, atrevido,
Alegro bem ritmado;
Então mística ao vivo,
Concreto sonho sonhado.

Latido bem temperado,
Suspenso mundo de fadas,
O velame enfunado,
Indiferente às vagas.

Indif’rente à roupagem,
Cristalino ser ou não ser;
Presa da sorte selvagem,
Qual bemequer-malmequer.

Estóica acrobacia
De amores imolados;
Amordaçada melodia
De poemas enlevados.

Corre, tropeça, regressa,
Bolina, corre no vento.
Sonha, cria, sente pressa,
Louco em pegar o tempo.

Mão surrealista do quotidiano stress,
De grandezas póstumas, efémeras glórias.
Melodia patética, fronteira agreste,
Balão de realidades fantasmagóricas.
Ex-líbris de paixões arrebatadas,
O habeas Corpus almejado.
Corso, vendilhão de malfadadas.
Ostracismo involuntário.
Ribalta sem luz em espectáculo logrado,
O implacável talião de pena e perdão.
Honorável tribuna de Deus e do Diabo,
Um Yoga Quixotado, un Asceta D. Juan.

Cibernética pautada,
Dialéctica consequente.
Estratégia gorada,
De táctica int’ligente.

Gavião de pena caída.
A síntese sublimada.
A reflexão profecia,
Em aragem remoçada.

Círculo espiralado
De antologia fugaz.
A indelével ousado,
Requiem sentenciado,
Numa lógica voraz.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sabedoria

“Summertime, and the livin’ is hard, daddy’s rich and his momma’s flat calm…”
A faina da malhada ainda se processava sem quebranto e sem lamúrias, como o havia sido ao longo de todo o dia, sob um sol abrasador e dono absoluto de um céu azul de Agosto; ainda mais escaldante porque o lajedo subjacente à eira, sobreaquecido, contribuía com mais e mais calor sufocante. Pairava aí um ar sem bafo, sem rugas, despido de qualquer farrapito branco, e não se viam pequenos remoinhos, minúsculos tornados, que levantam pó e arrastam consigo pequenos insectos que serão alimento apreciado por aves que os esperam planando nas ascendentes térmicas. “O Pinheiro”, nome porque era conhecido o local onde se procedia a essa tarefa anual de separar o grão da palha, era ficcional, como ficcional era a sombra que dele emanava. Pinheiro nem de copa redonda, nem gótico, nem outra espécie qualquer. E, Vivenda Pinheiro, como também se chamava, não reunia condições arquitectónicas para tanta pompa e água benta!
Seriam as seis da tarde e o sol mantinha-se empoleirado no seu alto, atento e sem sono; seria necessário esperar mais três horas para que, com o entardecer e à boca da noite, o astro rei se deitasse para lá do oeste, mais além, ainda, do sol-posto. Os pássaros, na sua maioria pardais, emudeceram, por ronha, o chilreio, acoitados em galho amigo, no recato da sombra da folhagem, e no consolo de alguma brisa que soprasse, suave: ganhando folgo para a sinfonia com inicio marcado ao moribundar desse dia.
Zé Coelho, homem de estatura média e franzino, encarregava-se afoitadamente de alimentar de palha de centeio a debulhadora, com perfeição cadenciada; aliás, nesta como em todas as tarefas a que este trabalhador de rebimba o malho deitasse mão, designadamente na qualidade de vedor, sacristão ou pregoeiro pós missa, dava cartas. Em fase mais tardia da vida, porque não sábia, dedicou-se a pastor de gado e comentador desportivo. Zé Coelho, dava cartas na desenvoltura do trabalho, impondo o ritmo aos demais, na execução das tarefas respectivas. A malhadeira soltava gemidos e roncos abafados com timbre grave de fagote quando engolia as molhadas de palha, como que avisando Zé Coelho que tivesse cuidado com as mãos, não fosse o diabo tecê-las: com o peso do cansaço e com as constantes carícias labiais no pipo comunitário, que corria todo o espaço da eira à velocidade de um abelhão, fazendo esquecer a ambiência abrasadora, até que os corpos caíssem que nem pedras devorados pelo sono e rendidos à fadiga: mulheres a um lado, homens a outro.
Marquinhas, a senhora do casal, depois de acabadas as lides do almoço - louça limpa e devidamente arrumada no lançador da banca de cozinha - regressara ao local do Pinheiro onde a malhada se desenrolava, e sentara-se em merouço de palha, que lhe conferia confortável almofada ao avantajado par de nádegas de que era dona e senhora. Marquinhas era monárquica, beata, melancólica, olhos fundos e bonitos, de olhar penetrante, e incomensuravelmente meigos e desculpabilizantes para os entes queridos; anca larga, vestia preto sombrio, mais por peso dos costumes do que por luto pesado que as circunstancias à altura recomendassem. Calçava meia preta que ancorava na raiz da coxa, por liga elástica e manifestava particular gosto por blusas brancas bordadas, de seda estampada, sempre que era oportuno, bem como por combinações (lingerie) de toque macio; bebedora compulsiva de café de cidreira: uma santa. Viajante incansável, para qualquer parte: Fátima e Cristo Rei de Almada, paragens obrigatórias. Nunca fora a Lurdes ou a Roma, locais que lhe ocupavam a memória e a vontade de peregrinar.
Nessa tarde de azáfama, solarenga e quente, o perigo andava, como sempre, por perto e à espreita. É assim que, nas mudanças de posição de sentada, para dar tréguas à nádega mais solicitada para assento, sentiu uma violenta ferroada na coxa que a fez soltar um grito de dor: - ai Jesus! Lamento que foi ouvido e presenciado por alguns dos jeireiros que, impulsionados pelo insólito acorreram de imediato a socorrer a azarada senhora, ajudando-a a levantar-se. É neste instante que vêem o agente causador do alvoroço: uma pequena cobra com aspecto de “víbora” que tentava escapar-se assobiando de medo. Mataram-na e enfiaram-na em frasco com aguardente, que nem formol, onde esteve, décadas, submersa. O veneno pode matar! Era a ideia dominante. Impunha-se uma consulta urgente: levá-la ao hospital ou chamar o médico. Qualquer das tarefas se adivinhava difícil, pelo transporte. Optou-se por levá-la para casa e chamar o médico. Assim foi: levaram a senhora deitada em carro de bois até à residência, enquanto Augusto Júnior mais Januário (ajudante), partia apressadamente em camioneta Berliet, a chamar o médico para acudir à emergência, o melhor que pudesse e soubesse, até porque não se conhecia antídoto.
- Donde teria aparecido aquela cobra? Perguntava Januário, perplexo, enquanto descia a N314!
- Cobra! - exclamou Júnior- Víbora, c..lho! Ou veio na palha, ou foi meu pai que a trouxe do Mogadouro, em algum saco de batatas que tenha sobrado de Campo de víboras…! -.
Na procura de médico disponível para a emergência domiciliária, encontraram Dr. Adalberto, clínico indefectível e sempre complacente com aflições realmente urgentes. Homem que não dava valor à importância e, se a enfrentasse, perguntava onde comprá-la e a que preço!? Dr. Adalberto era um homem na casa dos cinquenta, uma idade que podemos qualificar com optimismo e carinho como o equador da vida, já em irreversível declinação biológica. Mas também, e por isso mesmo, a que confronta o homem com a hora da verdade e lhe exige peremptoriamente que dê o melhor de si. Até porque os tempos das angústias, das incertezas, dos erros, dos pesadelos, do apoio e lições de colegas experientes tinham dado lugar a um médico calejado, sabedor, confiante e confiável.
Este João Semana era pouco andarilho, porque o porte grandalhão, a fama de "Obélix", e o não menor proveito de lambazana por tudo em que a carne de porco é matéria-prima, lhe condicionavam os gestos, as pernas e as mexidas: embora, ao contrário daquele personagem gaulês, este esculápio ao não haver caído em nenhum caldeirão de poção mágica de druida, era calmo no trato e manso nos gestos. Contrariamente a Obélix, que se saiba, Dr. Adalberto era casado com senhora muito bonita, a quem não gostava de ver aproximar-se muito da janela: o sagrado compromisso do matrimónio, às vezes, não chega ou não impede que o coração saia pela janela fora e esqueça ou não saiba o caminho de regresso!
Dr. Adalberto aceitou ir na camioneta de Augusto Júnior observar a mordedura e evacuar Marquinhas para o hospital, se o quadro clínico o aconselhasse. Munido da respectiva "mala de médico", ocupou o "lugar do morto" na cabine da camioneta, com Januário prensado a meio do assento corrido a toda a cabine, e lá foram a caminho do Brunheiro, de vidro aberto, apreciando a paisagem que fugia em sentido contrário.
Chegado ao destino, tinha a esperá-lo Augusto, o dono da casa, que o levou ao contacto com Marquinhas. Cumprimentou, trocou algumas falas, observou, palpou e optou por tratamento local e relativamente simples, ao ter concluído que dominaria a situação com o equipamento e as ajudas farmacêuticas que trazia consigo na respectiva mala.
À vista da paciente e demais presentes, começou por dissertar sobre répteis e serpentes, e dizer não haver antídoto para a mordedura da víbora-cornuda, a mais perigosa para pessoas debilitadas ou crianças, o que não era o caso, tranquilizou. Tão pouco se poderia temer a espécie vivípara, que lhe mostraram, porque parecia tratar-se de parente menos virulento, ao não possuir o desenho de pele distintivo da cornuda. Optou por colocar garrote, dar analgésicos e unguentos locais sobre a mordedura, e ficou relativamente tranquilo com os poucos sintomas e o discreto entumescimento local. Disse para consigo: “wait and see”!, com a convicção de que o prognóstico seria favorável.
Acossado de todos os lados pela curiosidade humana, com um voejar constante de pessoas à sua volta, terminou a observação e respectivo aconselhamento da desditada. Alguns ganapos de roupa encardida, com moncos, ranhos e sarros mal disfarçados, e com calça rachada, engrossavam a plateia de mirones.
É neste momento e neste ambiente que começaram a chover perguntas inapropriadas, e apelos de todo o lado:
- Senhor Doutor o meu filho tem esfoira!;
- Senhor Doutor o meu pai não obra há cinco dias!
- Senhor Doutor, chá de bolota de roseira brava faz bem às pessoas, digo: ás guerduras, acúcres e tinsões?
- Não te sei responder, homem de Deus – retribuiu o clínico, sem receita ou panaceia assertivas.
- Só perguntei pensando que se o dito chá faz bem a cavalos e a burros, também deve fazer bem às pessoas!
– Que Deus te responda! - retorquiu Adalberto.
- A minha tensão tem andado a cento e sessenta e um à hora: preciso de soro?

Dr. Adalberto aguentava as perguntas tergiversando com exemplos, que entretinham os perguntadores:
- Fulano, com 23 anos caíra de um galho onde colhia cerejas e fora levado ao hospital onde apanhara 7 pontos. Ficou internado. Ao 2º dia disse a uma das visitas da sua confiança que lhe levasse uma garrafinha de aguardente que sabia que era boa, porque estava habituado a beber todos os dias um copo de manha e um copo à noite ao jantar. Ficou curado; e casou a seguir. A Mulher morreu aos 82 anos, e primeiro que ele. Teve 26 filhos, que morriam frequentemente à nascença; sobram 12, menos um que veio em esquife da Guiné. - A minha mulher nunca se levantava da cama sem estar prenha após ter filhos -; contava que também lhe chegava a roupa ao pêlo, um pouco…! Mas, ainda cá anda!
Rosa Maria, outra queixosa, dizia: - Senhor Doutor, tive três filhos quase seguidos, ao terceiro já não andava bem, mas, em vez de repousar pus-me logo a coser pão, fiz força, o úterê desceu-me à boca do corpo e escapava-se-me a urina amiúde: tenho a vida negra. Hói jasus! Que posso fazer?
Outra dos presentes: - Tenho aqui um calo na ponta do dedo, parece um cão ferrado: zás!, zás!, zás!, antes queria que me cortassem o dedo que ter sempre aqui este olho de pita a ralar-me dia e noite: vejo-me negra com estas dores de morrer. Abaixo do joelho até se me acende a perna. Vou para comer e o coração e o estômago não querem; estou abatida: apesar dos depositórios. Com a rela da espinha nem posso tocar as vacas ao monte. Que vou fazer à vida?
- Sr. Doutor, tenho chechenta e dois anos, morreu-me o marido cum câncaro de fígado, há pouco, vivo sozinha e ando desconfiada: tenho medo de ter um mal ruim, caio muitas vezes, alguma coisa se passa comigo, ando aflita; agora que se vêm tantas destas coisas ruins por aí..., a doença da moda...
Dr. Adalberto achou chegada a hora de por fim ao tempo da consulta, até porque o emaranhado de queixas e padecimentos não permitiria um raciocínio lógico e só embaciaria a marcha para o diagnóstico.
É aqui que Dr. Adalberto joga uma cartada de mestre cuja sabedoria emudece todos os consulentes dizendo:
- Bem… Olhai…
Pés quentes,
Mentes frias,
E límpidas urinas;
Cagai para as medicinas.
Terminava a consulta, já não era sem tempo e, Augusto, dono da casa, perguntava ao galeno pelos honorários:
- Quanto devo, Sr. Doutor?
O clínico queimou meia dúzia de segundos a reflectir e inquiriu-o:
- Tens aí um presuntinho?
Ainda a pergunta se volatilizava no ar, já rapidamente cobriam a mesa do escano com toalha de linho, pressagiando um ambiente de água na boca tão do agrado do homenzarrão Adalberto.
Ao ver um opulento exemplar de presunto em cima da mesa, seguramente da “desfeita” do que fora um soberbo borrão, com aquele coto podal característico, que não engana nem um cego; pão centeio escuro e caneca canelada azul e branca, generosa em volume e bem abonada em conteúdo, disse o Galeno de olhos arregalados:
- Não é nada! Não é nada!
- Que Deus o abençoe e lhe dê muita saúde! – agradecia, assim, em jeito de estribilho, o coro das velhas, à despedida.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Tragicomédia ao retardador
Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967 registou-se, na região de Lisboa, precipitação intensa e concentrada, tendo atingido, na estação de São Julião do Tojal, no concelho de Loures, 111mm em apenas 5 horas (entre as 19h e as 24 h do dia 25). As estações da região de Lisboa registaram, nesta data, cerca de um quinto do total da precipitação anual.

Sábado 25 de Novembro de 1967. Pairava no céu de Lisboa um negrume carrancudo e intimidante: o fim de época outonal, o País de Camões e das Uvas e, mormente, esse dia que se arrastava e agastava deprimente e tristonho. A prol de Fernão Capelo Gaivota, irrompia do nada, às centenas, aos milhares, em bandos em que sobressaía o branco e o preto: aves marinhas de elite em algazarra humana, permanente. Não se cansava de evoluções aéreas sobre o Tejo, ora agrupada para acrobacias ou rituais baléticos, ora a solo, planando, infatigável, sem barreiras, num crescendo elegante, inspirada no bolero de Ravel, em bolina horizontal tête-à-tête ao vento, ora ziguezagueando, ora em voos rasantes de cálculo preciso, ora subindo ao reino das nuvens aonde, sem artifícios, o homem só chega com o olhar: seres voadores livres e indiferentes a qualquer tormenta. O anticiclone dos Açores agachara-se um pouco a norte da sua posição média habitual para a época do ano e permitia escapadelas, em latitudes relativamente baixas, de depressões carregadas de tempo. A esta condição somavam-se, então, alterações meteorológicas excepcionais, com a formação rápida de uma célula depressionária a partir da Ilha da Madeira, culpa da gota de ar frio que ai se aninhara em altura, na explicação dos meteorologistas. Em Lisboa, pairavam no ar fortes evidências e sérios sinais de alerta de mudanças de tempo em curso, de respeito. Daí a constatação do barómetro em baixa, num prenúncio de mau augúrio, com indícios de agravamento progressivo das condições atmosféricas, pela aproximação da depressão vinda de oeste, do Mar Oceano, onde enchia os odres de água, a caminho da capital Lisboa, substituindo os Velhos Aguadeiros. Mas, ao invés destes que se faziam anunciar por pregões: “Há água fresquinha! Quem quer, quem quer?”, o temporal metamorfoseava em pregoeiros diferentes formas de se anunciar: as cores do arco-íris, a carantonha de aspecto pardacento de chumbo do horizonte e nuvens que cobriam o céu carregadas de luto pesado; o vento a refrescar e a levantar saias desprevenidas e, por último, o dilúvio no lombo dos mais incautos, o que acontecia com frequência.
Cerca das dezanove horas do citado dia, um pequeno grupo de raparigas e rapazes começáva a descer as escadas da Cervejaria Restaurante Odeon, à esquina da Rua dos Condes com a Rua das Portas de Santo Antão: em frente ao Ateneu Comercial de Lisboa.
Orimar, rapaz de pedigree não fidalgo mas de cavalheiro, ex- rambo e defensor de oprimidos; estupendo organizador de encontros e tertúlias de amigos – até de inimigos: é justo dizê-lo só para valorizar o quilate de negociador e gestor de encontros e desencontros, que este inteligente amigo do peito possuía -, tinha convocado esse grupo de companheiros (lato senso), para um jantar convívio no citado restaurante. Seria um pequeno rancho de oito a dez convivas: muito mais por amizade e muito pouco, mesmo nada, de engate. Correu tudo muito bem: boa e sã camaradagem; amizade e boa disposição; escrita em dia; um ou outro delírio intelectual, uma ou outra escapadela até às origens.
O jantar foi divertido, como sempre e a ementa, desta vez, boa, deliciou os presentes com um venerado e opíparo bacalhau à cebolada, bem regado com néctar apaladado, seguramente da Casa José Maria da Fonseca, com sofreguidão, como de costume! O bacalhau à cebolada foi pretexto para incursão literária pela obra De Eça de Queiroz, guru dos bons pratos e dos bons vinhos. O calor da conversa e o aconchego da companhia ancoraria aí os visados até ao fecho da casa de pasto, não fora o facto de, já passando das dez da noite, os empregados pedirem para que se abreviassem as conversas e o pagamento da conta, e que saíssem ligeirinhos porque a água começava a querer inundar a sala do restaurante, o que viria a acontecer. Comprovados os factos pela sua evidência - a água escorria livremente degraus a baixo e, além do mais, enferruja! - pagaram a conta, levantaram-se e, embora tivesse pairado colectivamente a ideia de se poder prolongar o convívio em qualquer local de diversão nocturna, tão pronto acabaram de subir as escadas e, já ao ar livre, constataram, sem margem para dúvidas, de que chovia torrencialmente e a rua se havia convertido em rio de alagada que estava. Os azeites de São Pedro desmotivaram o grupo para qualquer incursão na noite e, assim, despediram-se até uma próxima tertúlia, com saudade e alguma ansiedade na vizinhança do bolso esquerdo do forro do casaco. Veio à baila o velho refrão de que só vem à lembrança Santa Bárbara quando...: os guarda-chuvas ou impermeáveis eram escassos; só o precatado Zénite é que se fazia cobrir por uma espécie de criolina. Pediram táxis por grupos, de que estiveram à espera, cedendo a primazia aos mais necessitados... e às donzelas. Lembra-se, um ou outro, apesar de a cabeça voltear já ao ritmo de carrossel de feira, que um pequeno grupo se unia em triângulo: Mestre Zénite, Silvino e Ferreira. - Aonde vamos ficar? - algum deles terá perguntado. A oferta foi recíproca e espontânea: elegeram Xabregas, por sentimento romântico e oportunidade rara, a bordo do bacalhoeiro Bissaya Barreto. - Fantástico! - Disse Zénite. - E vós tendes autonomia para que nos sintamos à vontade? - Volvia Zénite prudente. - Ele é o dono! - Tranquilizava Silvino - E que não fosse!, ele com um arême resolve tudo! - E assim pôs ponto final em qualquer indecisão. - Táxi!, Cais de Xabregas, sff -. Sorvidos na noite mal iluminada afastaram-se sem enxergar um palmo à frente do nariz, tal o embaciamento dos vidros do Mercedez Benz verde-preto de mudanças ao volante, e pela escassa visibilidade que o limpa pára-brisas deixava escapar ao ritmo de farol de navegação. O táxi seguia em cadência lenta, ensopando tudo e todos próximos à sua corrida.
Chegados ao cais de Xabregas o taxista não queria levá-los junto ao barco porque o Tejo ameaçava galgar o molhe, e o cais estava cheio de charcos. Insistiram e acabou por ceder às suas súplicas. O táxi partiu e a chuva continuou a cair com intensidade.
Subiram o portaló do navio e foram directos à sala de jantar dos oficiais, e aí se distribuíram em jeito de estado-maior, para aclarar ideias. Zénite gostou do aconchego das madeiras e do cuidado com que o verniz se exibia; havia ali um subtil ambiente Indiano que provocava algum espanto por se tratar de navio de pesca! As baixelas eram de prata e a despensa, pouco farta ainda – porque faltava um mês para zarpar, na circunstância de Setúbal depois de carregar sal -, tinha o suficiente para calar o rato ao estômago e um pouco mais.
A presença de um piano faria o local paradisíaco e daria azo a exibições esplendorosas e extrovertidas tão caras a Zénite. Mesmo assim, o mergulho na noite foi de cabeça!

Mestre Zénite desde tenra idade se afeiçoou aos barcos e à navegação fosse ela fluvial (dos Armadores: Lombudo ou Redes) embrião modelar para a produção pictórica do Essor – pelo menos!-, entre outros: um primor, assim se considera.
Codessais, sua terra de nascimento faz parte da margem fluvial, que fica bem próxima da praia da galinheira, tinha todos os ingredientes para ser um bom ministro da “marinha”, como fora Quintanilha Mendonça, não fora um chamamento genético, quase predestinação para as “Belas” Artes. Todavia, a paixão pelo desporto náutico ficou-lhe para sempre entranhada e viva, ainda que tivesse corrido Seca e Meca, onde poderia ter perdido para sempre a alma e o apego telúrico a Codessais e aos barcos.
Além da chancela genética do professor Artur Maria Afonso, a fisionomia de Zénite, exibe caracteres que oscilam um pouco entre os de Yves Montand e os de Jaques Brel, com a incrustação de uns incisivos à Tony Blair.
Zénite começou por recordar o ambiente do jantar, o sucesso das últimas exposições, nomeadamente o Prémio Nacional de Pintura (1967) e muitas estorinhas cheias de fina piada, apimentadas por criatividade loquaz; a teoria da relatividade, Agadir e “Vive la France”!
Falou do mar; lembrou um pequeno barco à vela, presumo “snipe”, quando fora estudante no Porto: muitas lembranças, muitas aventuras, muitas tiradas de bom e inteligente humor.
Zénite, romântico incurável, muito influenciável e influenciado pela “Casa Lopes” (isso já é matéria para outra estória!), falou: do bom relacionamento com o seu amigo musicólogo Morais a propósito da traição e desgosto do alfaiate Albatroz (outra estória requintada!); do episódio de baptismo de seu irmão mais novo, a quem seu pai, o poeta Afonso, daria o nome sui generis de Lereno (Lerano…, Larano..., Leiranco…, para alguns...); das orações de sapiência tidas e achadas com mestre Nená Bicha e com outros intelectuais do Largo das Freiras; dos contactos nocturnos (outra estória…) com o grande arquitecto dos costumes: Argentino Galego.
Zénite além de vegetariano era e é abstémio; já os outros lados do triângulo humano dessa noite: Silvino e Ferreira, não vos digo nada… água nem para lavar os dentes, pelo que os tira-gosto sucediam-se a bom ritmo! Assim, entre scoch, tinto da Bairrada e bebidas deslavadas de tão brancas (leite; água com limão, etc, tudo coisas que fazem inchar...) do gosto de Zénite, foi-se hidratando o corpo, com salgadinhos à mistura, e algum isquinho de peguilho!

Pires Silvino prendeu-se mais a elocuções empolgantes da literatura clássica tendo puxado da cartola de filósofo tão viva a tinha nessa altura. Resumo aquela que me ficou na lembrança:
- …Talvez o lendário Herman Melville se aproxime, também bastante, desta problemática. Não pelo desejo de vingança de perseguir a Baleia Branca que o mutilara e o lançara na aventura de obcecadamente a perseguir e matar. Apesar de tudo, não. A sua visão dos terrestres é absolutamente sincera, exacta, a preto e branco. Acab, o emblemático capitão, anseia redimir o mundo redimindo-se a si mesmo. Para Melville o mar é só um meio, um cenário onde arrumar devidamente as coisas. Não como em terra, onde um qualquer se pode esconder atrás das mais variadas formas ou cores: médico, informático, juiz, promotor de vendas, professor, locutor, pintor, escritor, economista, corretor, padeiro... Para Melville não. Só tem sentido ser homem do mar e pagar o preço disso. Acab persegue a baleia branca, um símbolo do mal, do seu próprio mal. E para destruir o próprio mal, destruindo-a, é necessário submeter-se a tudo e enfrentar todos os terrores que a vida reserva. O mar pode estar estanhado tal a calmaria ou rugindo ameaçador. Não importa porque não é mais que um cenário aonde se representa o mundo. As derrotas de Pequod transcorrem em águas exóticas, mas sempre perigosas. O mar como lugar de prova aonde os homens têm que prestar contas. E não a ninguém externo ou superior, senão à própria natureza… -.
Ferreira, por seu turno, deu um modesto e tímido aporte intelectual à reunião; muito parco em palavras, até porque a aguarela de conceitos dos outros dois mestres da retórica, tinha sido empolgante : limitou-se a dizer que não tinha medo do perigo e que a morte não passava de covarde voyeuse, tendo feito alusão, de forma reiterada, aos poemas das canções de Paxi Andion (Marinero esta tu alma teñida de mar, calada de tiniebla y temporal. Tienes la barca comprada y la morada alquilada, del tal modo eres esclavo de la mar, pescador, que el dia de la partida y soltar la ultima amarra no sabes dejar tu alma en tierra adentro varada y al final...al final es en la mar donde la vas a entregar. ) e Jaques Brel (Le Port de Amsterdam), o que já fazia um pequeno “buquet” cultural, não é?!
Zénite foi adiantando que não dominava o léxico náutico, muito menos da marinharia dos descobrimentos. Talvez por isso foi fazendo perguntas a Ferreira, do género: - Vós sois embarcadiço ou tripulante? -, - Vós fazeis parte da tripulação ou da companha? -, - Vós sabeis o que é ir pró c…lho -, coelhinhos que ia tirando cartola, aqui e ali. Bom!, tudo estaria bem desde que mantivesse bem longe a presença de Mona Lisa, e nunca abordo: tenho que fazer a inconfidência de revelar que Zénite era supersticioso ao som da Mona Lisa: não sei se pelo mistério que há no sorriso, se pelo naufrágio do Titanic… ou os dois…

Mais porque o adiantado da noite já era um marco e menos porque a conversa estivesse enfadonha, bem pelo contrário, zénite perguntou: - Dizei-me, aonde fico a dormir? -. -Boa e oportuna pergunta – comentou Pires Silvino. Sugeriu-se que Zénite ocupasse o camarote do Capitão (o mais amplo, mais cómodo e mais bem ornamentado); Silvino tinha reserva no camarote do imediato, e Ferreira, no de sempre, com beliche mais pequeno e um exíguo sofá.
Mostraram-se os aposentos e, desde logo, Zénite ficou maravilhado, até, de novo, com alguma estupefacção ao não suspeitar tanto requinte num navio de pesca. Estendeu-se displicentemente ao longo da cama, vestido. Não consigo imaginar, pela cara de alegria e bem-estar de alma, o que lhe terá passado na cabeça! Recordo, sim, que em mirada perdida deu conta do intercomunicador de latão amarelo lustrado, começando de imediato a falar e dar instruções de navegação, e outras. Para dar alguma verosimilhança ao sonho, subi à ponte do navio e da casa do leme mantive a conversação (roufenha como a que se ouve fanhosa no yellow submarine ou, se preferirem, um som nasalado de Polichinelo ) pelo intercomunicador. Zénite não resistiu em subir à ponte, não fosse ele o capitão em potência. Gostou de ver o cérebro da embarcação pesqueira, as ajudas à navegação, as cartas náuticas; olhou o envidraçamento da casa do leme e sonhou um horizonte a perder de vista, lonje do ruído e tão fértil em criações pictóricas;, teceu considerações e aproveitou para citar, sem referência a algum dos presentes, creio eu, Jorge Amado em os Velhos Marinheiros: “Vasco Moscoso de Aragão, Leão dos Mares, tome do leme e leve-nos às p…tas”.
Um sono pesado tomou conta dos três compinchas.
Já o sol tinha almoçado quando o triunvirato acordou para a vida e se levantou, e eram horas de regressar à baixa e compensar a hipoglicemia reactiva com alguma coisa quente e doce.
Prestes a deixar o arrastão, já de saída e no convés, com Zénite em olhada perdida e nostálgica pela parafernália de pesca instalada no convés, talvez a querer perguntar para que servia tão grande guincho à borda, deparou-se, não sabe se por coincidência, se por intencionalidade, com alguém bastante esbodegado, que dardejava olhares de poucos amigos e não parecia bom de assoar, que media as três aves raras que se escapuliam do seu navio, inquisitorial: não era difícil abrir-lhe o ferrolho da alma uma vez que a intenção de desagravo ou de molhar a sopa estava-lhe escrita na cara: forte reprimenda, no mínimo! Os embarcadiços furtivos, anteciparam-se com fala humilde e ingénua, apostando no efeito surpresa, a deitar água na fervura: - Bom dia contramestre! -, Este não respondeu com cordialidade ao cumprimento, limitando-se a dizer enviesadamente para o infinito: - O Boi é quem tem mão nisto, sempre! Estivemos na iminência de ir parar ao Mar da Palha para fundear na companhia da Fragata Dom Fernando, e ninguém quis saber se o Boi precisava de ajuda ou não!, Folga cabos, caça cabos, num vaivém, toda a noite: um inferno e um calvário no mesmo barco -, recalcitrava o contramestre. - Boi é quem aguenta isto… -, e repetia o estribilho até à exaustão, olhando o infinito! Bom! Também não ia longe se direccionasse a crítica a qualquer lado do já citado triângulo humano. - Até logo contramestre! - `Torna-se necessário abrir aqui um parentesis para explicar que "isto do Boi", contramestre do Bissaya Barreto, o homem de boa medra que ensinava a “pescar” cagarras por entre os Icebergues dos mares da Terranova, nada tem a ver com qualquer episódio de infidelidade ou "menage à quelqu’un", de que ele tenha sido alvo, mas estritamente com o aspecto atarracado, sebento e gordito do seu corpo que, expelindo broncos modos em vocabulário limitado, fazia jus à sua natureza truculenta, a que acabou por associar a figura taurina, por nela achar, certamente, um bom modelo para o seu auto-retrato.
Desceram o portaló e dirigiram-se à paragem do eléctrico da Carris que os levaria de regresso ao Rossio.
Já instalados no suma pau do eléctrico, a paisagem que lhes chegava através das vidraças, começava a encaixar no cenário fantasmagórico descrito por Boi; as pessoas que seguiam na carruagem deixavam sair comentários que apontavam para a réplica do dilúvio… Zénite e Cia começavam a temer que a Arraia-miúda, a do signo do mexilhão, tivesse pago cara factura com a ocorrência do insólito meteoro. Coçavam-se, apreensivos, pelo desconhecimento absoluto da tragédia que lhes passou ao lado, com a pele a salvo. Mas apenas, e só, a satisfação de saber que algo raro tinha acontecido sem lhes ter bulido minimamente com a comodidade e com o à-vontade, superava todo e qualquer remorso.
Aliás, toda essa noite navegaram mar a dentro, mergulhados num azul delirante ao encontro da ilha deserta onde se refastelaram no deserto do descanso e total libertação; como peixes à solta num mar de velas calmas, perdidos sob um céu azul imenso num mar imenso, perfumado e vivo.
Temiam, ter de se refugiar no silêncio durante anos, o que viria a acontecer, por vergonha. Não poderiam ser efusivos com amigos, porque o relato cairia no ridículo ao não transbordar humor, nem trazer qualquer suspense, nem alegrias desmedidas; só tristezas de cortar o coração, pelo peso da tragédia. E, por mais que se esforçassem em fazer cócegas, não importa a aguarela humana, seriam sempre mais mornos que excitantes. Qualquer intenção programática de fazer fornicoques não teria êxito; quando muito acção de desassombrar. Experienciaram, a catarse e o êxtase, a memória, o cheiro e a musicalidade de momentos prazenteiros salpicados de sentimentos extremos de alma que, a desvanecer-se em lume brando, lhe prolongarão infinitamente o paladar dessa sabatina, aquando do desembuçar da miríade de pilhérias, escultura a canivete, esculpida na árvore dessa noite de Baco, invernosa e diluviana, de alienação total… para a eternidade!
O eléctrico parou no Rossio, compraram avidamente um jornal que sobrasse, ainda, nas bancas e dirigiram-se ao Café Nicola, para o pequeno-almoço; seriam as três horas daquela tarde cinzenta e triste.
- Café com leite e torradas!-, pediram em uníssono! Estenderam o jornal em cima da mesa e o que liam não lhes dava a verdadeira dimensão da tragédia: que afogou cerca de cinco centenas de vivos. A realidade nua e crua chegaria de forma esparsa, a conta-gotas e mais ou menos filtrada; nos seguintes extractos da época:

Comércio do Funchal : «nós não diríamos: foram as cheias, foi a chuva. Talvez seja mais justo afirmar: foi a miséria, miséria que a nossa sociedade não neutralizou, quem provocou a maioria das mortes. Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando se morre por o ser»...

Ao Mestre e ao Diabo (não lhes acontece um…) pinta-lhes a sorte ao retardador!

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Homem dos sete instrumentos

A manhã acordara com nevoeiro que se espreguiçava, displicente, sobre a cidade, vindo do rio. Detrás das vidraças da porta da sua loja, aquecido pelo fervilhar de ideais, mais que pelo calor emanado das fracas brasas afundadas em braseira de cobre e abafadas em papel de prata, Saramita, como Estragon e Vladimir, olhava o movimento da rua, mergulhado em pensamentos, à espera de alguma coisa ou de qualquer surpresa que lhe cortassem o tédio.
Tummm-tummm-tummm...tum-tum-tum-tum! Vai ser representada a peça a bingala… - Não. Não vai! - Murmurou para consigo, Saramita, passado o momentâneo devaneio, acordado ante a austera realidade que obriga a esfregar de olho. "Enfim!", disse ele, "fico-me, pelo entreabrir da cortina a sonhos e projectos para um dia que começa!" Tudo isto fora rumor de Sibila, Quinhas Pomba, quem sabe, que lhe sacudia a razão de volta ao mundo real .
Era uma vez, um figurino e astuto figurão, que dava pela nomeada de SARAMITA, a quem José Manuel Fontes Mesquita cedeu a identidade. Com nomeada num círculo territorial com diâmetro vertical de Tamaguelos à Várzea e diâmetro transversal para cá e para lá do rio Tâmega, tocando Segirei e Serraquinhos, entre outras aldeolas. Poderá, à primeira vista, parecer pequeno este universo onde Saramita era constado, sobretudo àqueles que nunca o calcorrearam a pé: que ignoram, que dava vida a centenas de pardais, tentilhões, estorninhos, codornizes, perdizes, melros, pintassilgos, cucos, milhafres, e outros fidalgos do voo; outras tantas flores; outras tantas árvores de pequeno e grande porte; outros tantos frutos; outros tantos vegetais... Saramita sobressaía aí com acentuado pendor político-social. Avesso à cor cinzenta, escolhia do arco-íris o vermelho, cor com que gostaria de tingir o tecido da bandeira hasteada na Edilidade, flamejando livremente quanto o vento é livre. Neste alinho libertário, pedia aos deuses um asteróide que acabasse de novo e de vez com os “dinossauros” do regime, dirigindo ao Céu votos ardentes a fim de que qualquer peste deles fizesse delícias.
Desconhece-se a origem do pomposo pseudónimo que escondia José Mesquita. Talvez corruptela de Semíramis...!? Quem sabe? O que espicaça assaz a curiosidade a vasculhar um pouco mais a origem, na suspeita de que Saramita era bem capaz de morrer de amores pela deslumbrante e voluptuosa rainha da Assíria, por quem se interessava e procura dados biográficos, com arrebatamento! É muito provável que a informação mais fiável e pormenorizada esteja confiada aos arquivos sicilianos do “Clube da Sola”!
Este nosso conterrâneo, Saramita, foi, também, uma verdadeira fonte de inspiração, um manancial de situações burlescas. Um talentoso e nato fazedor de estórias a esbanjar graça e carregadas de maliciosa inteligência. Um irrequieto. Um inconformado. Um safado. Um andarilho por terras do Brasil. Um iconoclasta. Um actor: “dos melhores amigos as maiores desfeitas”, dizia ele a propósito de um incêndio que, por acaso, ateara em fazenda própria, coberta pelo seguro!.. Ou “eu já estou do lado de cá, agora que se f...dam"; ou “para comer qualquer partido serve!...” . Um autor de peças teatrais: “vens ou ficas?...” Um topa a tudo, como diria o seu melhor amigo, Castelo Branco, simultaneamente o seu braço direito.
A relação com o feminino foi de um fervoroso anti-misógino: propenso a encantamentos, ainda que, não fora a educação e os costumes machistas, expressava um cavalheirismo encapotado, dado a assobios trinados de tirolês, recorria a figuras e acções românticas, à arte do gracejo, arredando com isso alguns concorrentes, enfadonhos, empoados e bem-pensantes das redondezas; quando o seu coração tinha necessidade de reconforto e novidade e se dava a devaneios quiméricos que já vinham da adolescência. Nem mesmo a epectase o fazia assustadiço: um garanhão!
Da polícia também não era figura muito grata. “Que melro!” Diziam as autoridades. “Um passarão de respeito.”
A análise retrospectiva do multifacetado cidadão Saramita, leva a concluir que, nele, a inteligência emocional tocava a plenitude.
Um furacão na resposta viva e cáustica que arremessava ao adversário, ou com que se esgrimia na praça pública ou aquecia as tertúlias. Granjeou prestígio e capitalizou o respeito dos opositores que varria com um verbo demolidor e emudecia sem piedade. Outros mais pudicos ou incautos enrubesciam mais que um Porto ruby. Colheu a amizade dos acólitos com quem repartia “as canas” que apanhava.
Castelo Branco, o amigo do peito, vem a talhe de foice, foi o único candidato a entrar para a banda militar, não conhecendo uma única nota de música, mesmo do tamanho de um carro, mas, a qualidade de “orelhudo” e o talento, eram tais, que lhe permitiam reproduzir à primeira qualquer música ou canção acabada de ouvir. Esta aptidão, entre outras, só conhecida ao Toninho das Pedras, terá sido uma bênção para muitas “performances” do herói Saramita, a duo.

Esta curta estória - Saramita tem muitas, qual delas a melhor!... - Ajusta-se à etapa desta escrita, ao mesmo tempo que lança aqui uma lufada de humor.
Encontrava-se o nosso herói à porta da sua pastelaria, empresa não muito lucrativa, - teve várias lojas, em variados ramos e em diferentes locais da cidade -, perscrutando em toda a linha o movimento da Rua Direita, com um pensamento dominante: isto está uma pasmaceira; hoje não acontece mesmo nada. Será que hoje não acontece nada? Enquanto este pensamento se entrecruzava com outros da mais diversa índole, surge um dos amigos do dia-a-dia, e das tertúlias, quase vizinho relativamente à pastelaria "Rico Folhado". Tratava-se, nada mais, nada menos, que Vespasiano Lampaça Paranta Júnior, o Director do jornal A Voz do Povo, homem alto, calmo, de visceral bonomia, em franco contraste com o nosso Saramita, a quem os caluniadores atribuíam, também, a edição de um outro jornal: “A Rijeza”, que alguma memória recorda um Editorial, não sei se o primeiro, não sei se o último: “Gatunos, Polícias e Azeite!... O Director do Voz do Povo chegava com o olhar apagado de um homem descontente consigo e disse ao aproximar-se de Saramita: “Mesquita, só me acontecem desgraças; acidentes é cá comigo”. “É assim tão bicudo o problema?" - pergunta Saramita calmamente, ao mesmo tempo que antevê aqui um lenitivo para a quietude dos acontecimentos -. “Imagina só!: tenho que imprimir o jornal e não consigo encontrar petróleo nesta cidade para fazer accionar a impressora.” “A imaginação não te esquenta o cérebro ó amigo!" – retorquiu Saramita – “Então não tens todos esses candeeiros da iluminação da cidade para colher petróleo?” - enquanto falava, Saramita, enriquecia a sugestão com um gesto manual, que exercita os quatro dedos da mão direita, para os dextros, em movimento sequencial estudado e ensaiado desde o neolítico pelo homo sapiens, para explicitar com propriedade a acção em causa -. “ Quererás dizer: roubar petróleo! O que expõe e compromete pública e seriamente o bom nome e o ofício deste humilde mas honesto cidadão, para além da dificuldade em executar tal... acção!” “ Não sejas atadinho nem tímido, queres que te ajude a ultrapassar a dificuldade em que estás metido, rápida e facilmente? Tens aí quatro patacos à boa vida - que eu cá nem um para mandar tocar ou cego -, e resolvo-te já a encrenca que te atulha até ao pescoço?” “ Não faço a mínima ideia de como vais fazer esse trabalho (...) sem te expores ao enxovalho se por ventura te sais mal da obra. Uma coisa é certa: preciso mais duma lata de petróleo do que pão para a boca, nesta altura; toma lá os quatro patacos.” “ Vês além aqueles quatro garotos?” - Apontou-lhe Saramita ao amigo - “Eu já os ponho a trabalhar.” - Deu um assobio soooviiisst e acenou com a mão para se aproximarem. Os garotos aproximaram-se carregados de interesse e curiosidade e perguntaram: “que quer mou senhor?” “Quereis ganhar quatro patacos?” – perguntou-lhes Saramita - “ Hãn! Queremos” - responderam os garotos com os olhos arregalados enquanto se coçavam por tudo quanto é sítio, digo derme, pela acção que a excitação e a vergonha provocam na pele -. “ Então levai esta lata e trazei-a cheia de petróleo, que ireis gamar” - aqui Saramita chamando já os bois pelos nomes – “a quantos lampiões de iluminação encontrardes até que a lata fique cheia, ála!” E lá foram os garotos à prospecção do petróleo. “Como vês foi fácil!" - explicou Saramita com ar persuasivo - "Espero que te seja igualmente fácil por cá fora o hebdomadário a tempo e horas, com o esperado monstro do dia e bastantes açoites em todos!” “Olha, por falar nisso", - adiantou Vespasiano - "tenho que ir andando enquanto não chega o petróleo: estou atrasadíssimo e sem ter ainda escrito o artigo de fundo, que é meu costume anunciar em caixa alta e, pior ainda, nem sequer pensei o tema, tão preocupado que tenho andado com a escassez do petróleo.” Saramita ficou de repente ensimesmado com esta confidência, a par de que corria o risco de não poder ler algo interessante que lhe valesse uma boa dose de zombaria! "Era só o que faltava" - suspirou Saramita - “Oh Lampaça! nem parece tua: tu que fazes um escrito com a mesma facilidade com que te lamentas! Tu, que sempre dizes ver no presidente um santinho sensaborão, de ar palonço ou fingido, que se agacha ou intimida aos tiques inchados de autoridade do poder central e da polícia politica; o mesmo presidente que lacrimeja ou se exalta com pregadores barrocos, babado com o esplendor da grã-cruz, do pequeno poder pessoal e da liderança musculada e sisuda, até sacripanta; o mesmo que se embrulha em serrubeco cinzento no inverno, e veste terno azul empastado de suor pelo garrote da gravata e o sobreaquecimento pós-prandial…no verão! Amigo! Tens hoje a carola pouco arejada! Que melhor mote poderás tu ter para o artigo que dar porrada na Câmara Municipal por falta de luz nos candeeiros!”