segunda-feira, 20 de julho de 2009

ALUNAGEM

Alunagem

Entre muitos amigos que tive, e tenho, recordo o Zé Pedro Pinto de Freitas, de Boticas. Zé Pedro fora dispensado do serviço militar por antecedentes de primoinfecção, sem sequelas físicas, diga-se de passagem, mas de grande impacto psicológico para ele. Era vulgar vê-lo distraidamente a percutir a sua caixa torácica com a ponta dos dedos sobre um dedo da outra mão apoiado sobre a região do peito a explorar, como método de diagnóstico, ou de exclusão, de "cavernas", imitando o clínico que lhe diagnosticou e tratou esse padecimento: Doutor Náná Videira. Como corolário da “tuberculose” livrou-se da preparação e mobilização para a Guerra Colonial Portuguesa em África.
Pinto de Freitas, testemunha deste relato, acoitava-se, então, no Porto, após ter desistido do curso de medicina de que fora inicialmente brilhante aluno. Esta tomada de decisão condenou-o a uma vida de forçada pacatez, bem oposta a todas as suas fantasias, que lhe fustigavam constantemente os componentes do sistema límbico, enquanto acordado e, muito provavelmente, na fase onírica que deveria ser longa.
Era Primavera e corria o ano da graça de 1970. Os dias arrastavam-se lenta e imperturbavelmente, sem sobressaltos, teimosamente de esperança. A essa data, a minha morada principal situava-se no Porto
Encontrámo-nos, como quase sempre, fortuitamente, algures no Porto, à noite, após o jantar. Depois de duas falas sobre tudo e sobre nada, convidámo-nos a aconchegar o estômago com um caldinho verde com migas, servido em malga, seguido de um pratinho de tripas, no restaurante Transmontano, junto à Praça dos Poveiros.
Meia-noite. Entrámos, sentámo-nos e encomendámos as ditas vísceras, ex libris da culinária da Invicta. Relativamente perto de nós, sentavam-se a uma mesa três pessoas, saboreando os respectivos "finos”.
Andariam pelos sessenta anos: uma senhora e dois cavalheiros. O sotaque era tripeiro e só um dos três é que tinha direito à palavra: o Jorge. A senhora, Isménia, assim se chamava, era delgadita e vestia um casaco de peles, bem ao estilo de coelho do monte. Tinha cabelo alourado, parecendo esconder as cãs que a impiedosa marcha do tempo queria anunciar.
Com respeito à nossa mesa, tudo decorria normalmente entre nós os dois que íamos desfiando a conversa ao sabor dos desejos, dos gostos e da amizade, degustando um ou outro “négus”, à espera da gostosa dobradinha. Talvez pela empatia que a nossa convivialidade estivesse a despertar, talvez porque na outra mesa o Jorge tivesse monopolizado a oratória sem emprestar a palavra aos demais, a senhora prendeu-se à nossa presença e pediu para se sentar à nossa mesa, o que teve a nossa aprovação.
A partir dessa altura os papéis alteraram-se. A senhora Isménia, tomou as rédeas da conversa e nós calámo-nos. A fala da senhora era a expressão da mágoa e o queixume do silêncio a que fora imposta naquela noite. Recordo-me que o tema da outra mesa era a alunagem. Relacionava-se com a Apollo 11, a primeira missão tripulada a pousar na Lua, tendo então ficado célebre a frase dita pelo seu comandante, o astronauta Neil Armstrong ao pisar a superfície Lunar em 20 de Julho de 1969: “Este é um pequeno passo para um homem, mas um salto gigantesco para a humanidade”. Jorge, (personagem identificado pela senhora como um ilustre causídico do Porto, com escritório na rua Santa Catarina) dizia então para o seu interlocutor (identificado como taxista da urbe tripeira, fiel amigo e companheiro de route, que frequentemente amparava o Jorge até à porta de casa), "já te disse, isso da alunagem é uma coisa como outra qualquer, fazem disso uma coisa do carago, como só alguns fossem capazes de fazê-lo”. O outro olhava o Jorge com um ar tanto confuso quanto espantado, até porque tinha visto toda a reportagem da Apollo 11 na televisão. "Repito", disse o Jorge, “ir à lua, ou alunagem, como lhe queiram chamar, é uma coisa simples: cada um aluna como gosta e como pode, sempre que pode. Eu, por exemplo, alunei ali naquela puta...! E agora!” Nessa altura, a senhora Isménia levantou-se parecendo querer reparar o agravo. O salto alcantilado de um dos coçados sapatos de pele de cobra não lhe suportou correctamente o peso, porque mal colado. Parte da sua cerveja derramou-se na nossa mesa.
Mesmo assim, disse em tom de desagravo, bem ao jeito do Mar da Tranquilidade daquela noite: "Jorge não te admito isso!...
Pediu-nos que a levássemos a casa o que fizemos cavalheirescamente.