quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Poema Sineiro

Poema Sineiro

Pergunta: alto está, alto mora. Todos o vêm e ninguém o adora. O que é?
Resposta: o sino!

Esfrego os olhos, ensonados e mal abertos pelo omnipresente despertador, de ruído execrável, cúmplice do despótico relógio de ponto, traidor e carrasco do lusitano galo, das medievais campaínhas de bois e cabras, da musicalidade do regresso ao redil, do toque das Santíssimas Trindades.
Ah! Os sinos! O sino da aldeia. Das aldeias. Das festas. Das procissões. Dos baptizados. Das novenas. Da Páscoa. Das núpcias (que agora se ficam pelos foguetes: a maior foguetório, maior a abastança!).
Também tem maldizentes e ciumentos chocalhos! "Burro como um sino!?"
Corruptelas satíricas ou mimos paternalistas: sino versus Alcino!
O toque a finados. O sino podia evocar o toque a rebate para avisar a aldeia de que algo importante ia ocorrer ou em vias disso. Na aldeia sabia-se se havia fogo pelo toque do sino. Dlong! dlin! dling! Dlong!
O Coelho, sacristão, que tão bem tocava o sino, fazendo-o repicar em dias festivos, com a mesma mestria com que o aclamava pregoeiro enfático da Missa.
Sino de presença obrigatória em actos solenes que tivessem um templo por testemunha.
“Por quem os sinos dobram (!?)”.
O tilintar incessante dos sinos das Renas em período de Natal (hoje dos supermercados com arranque temporão a cada Novembro).
O som nostálgico da meninice.
Os sinos tocavam três vezes para o início do trabalho da apanha do cacau em S. Tomé e Príncipe.
Sinos no final da abertura 1812, de Tchekovsky.
O sineiro da armada. O sino, único com estatuto de corda, a bordo das embarcações.
O carrilhão de Mafra que organiza os sinos em assembleia. A tonalidade menor que lhe dá aquela sonoridade doce.
Os sinos da cena da coroação de Boris, de Boris Gudunov de Mussorsky;
Os sinos que inspiraram a sexta gravação que Mário, o carteiro - de Pablo Neruda -, fez no campanário da Igreja local...!
Sinos dolentes que dobram. Dobram na sinfonia fantástica de Berlioz.
Os sinos que enriquecem o coro infantil no 5º andamento da terceira sinfonia de Malher: bimm, bamm, bimm, bamm...
1494: a data daquele sino enorme transportado para terra, a custo, em carro puxado por junta de bois, e um bom punhado de homens, aquando da segunda viagem de Colombo “às Índias Ocidentais”!
Sinos na Sinfonia do Requiem (da guerra) de Benjamin Britten.
O Sino da Torre da Paz em Benfeita, aldeia do concelho de Arganil tem a tradição de comemorar, o fim da II Guerra Mundial, tocando 1620 badaladas.
“Tocam os sinos da nossa aldeia, vai passar a procissão”, quem não se lembra da talentosa voz que o Villaret emprestou a este poema?
Sinos no final da segunda sinfonia de Gustav Malher.
Outros tantos compositores que mergulharam nas campânulas destes idiofones, quais sibilas composicionais, e nelas colheram engenho e arte para belas obras.
Sinos que anunciavam as guerras e que eram fundidos para canhão.
De plumitivo atento se lê: Os de Arcadiços queixam-se ainda de que “os sinos da sua capela lhes foram roubados para Travancas e até hoje ainda não voltaram”...
Rua do sino em aldeia de Barroso.
«Os sinos de Maçaínhas cantavam assim: tem lêndeas, tem lêndeas, e logo os da Corujeira diziam: se tem tira-lhas, se tem tira-lhas. Os dos Trinta perguntavam: com quê? Com quê?, e os de Vale de Estrela diziam, com a sua voz grave, com o martelão, com o martelão!».
“Um mestre é como um sino. Se alguém der apenas um leve toque, tudo que escutará é uma leve vibração. Mas se a mesma pessoa sacudir com vontade terá um ressonar bem alto, que vai abalar até o fundo da sua alma. Perguntem com coragem, e só parem quando obtiverem a resposta que procuram”.

Agora, num tempo em que o relógio/cronómetro tatua a condição humana e que está presente em quase todas as ferramentas de trabalho, o sino do campanário deixou de convidar à reflexão introspectiva, à exortação ao silêncio, à vida em comunhão com o outro e com Deus. Não mais se ouvirá a trompa do anjo anunciador do sagrado, já que foi trocada por ruídos electrificados e ampliados por campânulas, na missão pura e simples de contar o tempo, repetida à exaustão, ridícula e gratuita, em registo de feira, em franca concorrência profana com o pregoeiro do peixe, sem qualquer sentido ou apelo às leis da sociabilidade: sem memorialística. Sinais do tempo. Poluição sonora numa réstia de tempo e espaço em que o verdadeiro relógio é o sol e o sino o seu núncio.

Ó Sino da minha Aldeia
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem som de repetida.
Por mais que tanjas perto
Quando passo, passo errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Fernando Pessoa

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