terça-feira, 30 de junho de 2009

O Anão de Xabregas

Nick Nack, com 119 cm de altura – há liliputianos mais baixos – lutou com resistência contra 007 da série James Bond em "O Homem da Pistola de Ouro" de Guy Hamilton (1974); acabou derrotado e, alegoricamente, "de cana" dentro de uma maleta – no filme, claro. Suicidou-se (na vida... real) em 1993, aparentemente por culpa de um tal Ricardo Montalban, por razões alheias a esta crónica.
O Anão de Xabregas, personagem alfacinha com escassos quatro pés de estatura, também perdeu (neste caso a feijões...) contra Zeca Monteiro da série "Friends Never Died", com quem lutou até ao limite do tolerável, na heroica e abnegada tentativa de aguentar ou anular a pressão psicológica da presença do referido Zeca Monteiro, em circunstâncias que tiveram lugar no Coliseu dos Recreios de Lisboa e que adiante se descrevem. Como complemento de informação será pertinente lembrar, que seria fisicamente impossível ao Anão vencer um veterano e medalhado combatente da Guerra Colonial Portuguesa na Guiné: Zeca Monteiro. A reconciliação, sem abraço (...) e sem perdas nem ganhos, – empatados, se mais percetível – terá sido possível através de diálogo franco e transparente entre Zeca e o Anão: - "Não vou contigo aos figos; não vou contigo à merda! Pátáti-pátátá! Tic-tac, três alqueires!" Choca-aí!


No micro universo do Circo sobrevive uma figura a que poderemos chamar de palhaço-saltimbanco, personagem mais bem definida no plural, já que quase sempre atua em grupo. O agrupamento de palhaços-saltimbancos diferencia-se da família de palhaços principais de que são exemplo: Tété e Rabanete, Tété e Caridade, Pollo y Pollito, etc.). Estes também são conhecidos por Os do perlimpimpim e ocupam o ponto alto da arte circense.

Várias gerações de Palhaços têm vindo a fazer a distinção entre: O Pobre, com o rosto maquilhado a cores vivas, calçando sapatolas grandes, calças largueironas, hirtos pelos nas pernas, maiores que pregos caibrais que lhe furam as meias, andar à pato, desajeitado, luvas com dedos muito compridos, e ainda, a omnipresente “batata” vermelha a esconder o nariz; O Rico que maquilha o rosto de branco – claro, calça sapato branco-polido, bem-posto e bem-falante. Às vezes, esta família dá acolhimento a mais cómicos Pobres.

A miudagem delira com as brincadeiras e as trapalhices destes artistas de cara pintada, com os seus números e com as estampilhas que dão e levam uns dos outros, tão bem simuladas pelo estalido de palmas; em contraste com o silêncio de cortar da respiração e o arrepio, quando o olhar, a medo, se fixa lá no alto da tenda do circo, sempre à espera que acabe em bem, a temerária atuação dos homens e mulheres do trapézio, ou do homem-bala.

Os saltimbancos, nem são pobres, nem ricos, nem remediados… Talvez pobres diabos! Uns desastrados! Uns desajeitados! Uns trampolineiros! Uns trapalhões! Bom! Estou a ser bastante redutor e até injusto. Há neles um pouco de tudo: empenho, dádiva, virtude e sacrifício: aprendizes de prestidigitadores, acrobatas, engolidores de fogo, lança-chamas, saltadores, bailarinos, cantores, etc. Nos circos modernos: Royal, Cardinali, Chen, Monumental, Mundial de Moscovo, de Mónaco, Du Soleil, etc., estes artistas saltadores preenchem habitualmente os tempos mortos entre as atuações, nomeadamente: quando é necessário montar ou desmontar estruturas que servem de suporte ou proteção a um determinado desempenho. Talvez por isso sejam desajeitados, ao terem de misturar-se e confundir-se com os "técnicos" que armam e desarmam essas estruturas.

O Anão de Xabregas, fazia parte deste escol de fazedores de riso e alegrias e, no seu caso, com responsabilidades acrescidas: era o elemento estruturante do grupo, o mister e, simultaneamente, o garante de um público entretido e refém da sua criatividade pantomineira. Para isso, tinha que medir rigorosa e previamente as consequências da sua performance, já que, só por si, a sua estatura tanto podia resultar em benefício, como em rotundo desastre, quer físico, quer psicológico, face ao vexame que o público lhe poderia tributar se as coisas dessem para o torto. Os saltimbancos recorrem à improvisação e fazem depender da leitura que a cada momento fazem do ambiente, os desenvolvimentos da sua actuação. Mas nunca dispensam a vassoura!
Conhecemos a grata figura do Anão no Coliseu dos Recreios de Lisboa, e posteriormente, acompanhámo-lo uma ou outra vez a caminho de Xabregas, no elétrico da "CARREIRA Nº 3 - POÇO DO BISPO - ARCO DO CEGO", de regresso a casa.
Aqui recordamos o único desaire de que temos memória em toda a trajectória profissional deste dedicado e talentoso comediante:

Com rufo de tambores, olhos assombrados e cabelos arrepiados, tinha acabado em apoteose a temerária exibição, “Salto Mortal”, da família Águias Humanas”, trapezistas voadores da Companhia de Circo. É neste oxigénio de suspense que uma súbita aura, seguida de temporário episódio de amnésia, bate à porta da memória do Anão, assacada à presença do espetador Zeca Monteiro.
Vale a pena, entretanto, aludir aos três aprazíveis lazeres na vida de Zeca Monteiro: O circo - está com a mão na massa –, a boa mesa – frango de churrasco…- e futebol - ligações ferrenhas ao Benfica. Foi um Doutor na indústria do desporto rei, não permitindo opiniões de curiosos no debate: “O assunto é sério e só entra quem sabe o que está a dizer!”, advertia, então. A única frase profana que se lhe conheceu, perscrutados os sinais para prognóstico do jogo com início iminente, foi comentar em sussurro aos “sócios”de tertúlia: –“Todos os jogadores, de ambos os lados, se estão a benzer… Vão empatar!!!”
Estávamos na época 1986-87. João Arnaldo Vilarelho, sportinguista, entrou insidiosamente no território de Zeca Monteiro e disse: - “Zeca, Chaves zero, Benfica zero! – “Ah!” – exclamou Monteiro, a desculpar a ironia do ataque, não fora ele de Vila Frade. Podia e devia a provocação de João Arnaldo ter ficado pela amostra, isto é, pelo cartão amarelo; até porque Zeca Monteiro seguia de perto o raciocínio frio e consequente de Agata Cristie, de longa data, o que lhe aguçava o discurso. Vilarelho não se conteve, ou não ponderou a complacência tática de Monteiro, e rematou mais forte: – “Sporting sete, Benfica um! E já lá vai o tempo dos cinco violinos…”. Zás! Cartão vermelho! Toma que é em serviço! Monteiro, sentiu uma onda gélida a subir-lhe a espinha e alegrias tristes a descerem no abdómen. Defendeu o livre direto e estalou o verniz e o vernáculo. Arriou a giga com o que de pior havia aprendido na Rua dos Gatos! Qual Quim Barreiros!!! que vendaval!: - “Olha, Arnaldo, bufa na cana e vê se os balões estão rotos! – foi a mordaz ordem que proferiu, seguida das referências à mais antiga profissão do mundo, passando por recomendações ao pai da humanidade e arremessos excrementícios, não esquecendo o respetivo esfíncter.

Feita esta breve incursão pelo mundo de Zeca Monteiro, em que pincelámos alguns traços ligeiros do seu perfil, regressemos ao Circo, no caso vertente, primeira fila da bancada do Coliseu dos Recreios, à Rua de Santo Antão, em Lisboa, onde um grupo de amigos, de que Zeca fazia parte, tomou assento, junto à coxia central, passagem obrigatória para o grupo encabeçado pelo Anão de Xabregas, nas suas entradas e saídas de cena.
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Tudo foi correndo às mil maravilhas: aos executantes, às feras e a outros do elenco que se salvaram na Arca de Noé. Nenhuma nuvem agoirenta a pairar por perto, tudo sobre carris. A alegria sobrava, nessa noite.
O ambiente e a técnica circense terão criado uma atmosfera delirante no imaginário de Zeca Monteiro, que, confidenciou posteriormente, despejaram no seu consciente o caleidoscópio da infância e adolescência, prenhe de recordações destes espetáculos.
Os lugares comuns vinham-lhe à memória, como cerejas: Meninos e meninas, senhores e senhoras, admirável público: O maior espetáculo do mundo vai começar...
“Ah! Os rufos (...); os circos... o momento de grande tensão dos “números” arriscados, de vertigem; o clímax, e o chamar de atenção, da incumbência do mestre-de-cerimónias, para a nata de cada exercício! Aliás, já a chegada da caravana era um sobressalto na vida íntima de cada um, e um safanão na pasmaceira do quotidiano coletivo. Meninos e meninas, Senhores e Senhoras, o circo chegou!
- Que tema este! Um arrepio! Até que um batimento seco na caixa punha fim ao rufo e anunciava o fim da acrobacia! Põem-se-me de pé os cabelos de tanta adrenalina!
Aliviado o “suspense”, o agrupamento musical privativo da companhia circense atacava um tema a preceito ao mesmo tempo que o “team” de artistas da “performance” acabada de executar se reconfortava com a ovação carinhosa da assistência, que decalcava o ritmo da peça musical com palmas em aplauso. ...É o circo... que apresenta...
Mas quando se ouvia o serrote afinado de timbre “violinico” do Zéquinha Quintanilha era o delírio! A magia, e um turbilhão de alegria para a garotada. O final reunia toda a família dos artistas, os quais, empunhando as bandeiras representativas das respectivas nacionalidades, davam início a um desfile circular em redor da pista, marcado pelo ritmo da música interpretada por virtuosos executantes, em atitude de reconhecido agradecimento, até desaparecerem para lá das cortinas que tinham guardado, em segredo, a surpresa dos “números”. Que diria Jaques Prevert, entre outros? Heminghway? Claro!
Um tango! “Palhaço”! Composição da autoria de Zé Firmino Morais Soares, emprestava a melodia à banda sonora do filme onírico de Zeca Monteiro.
Novamente o vozeirão do mestre-de-cerimónias:
Senhoras e senhores! Meninos e meninas! Na pista deste Circo, para alegria de todos, em especial dos mais pequenos, chegou o momento do riso ao nosso espetáculo!
Quintanilha Mendonça, “Palhaço pobre” que ria e chorava à mercê dos tempos e das histórias que contava, colou-se à mente de Zeca Monteiro que nem chicla.
O vibrato do serrote (marca avião) deste lendário fazedor de riso, quase arrancava uma lágrima furtiva à nostalgia de Zeca Monteiro, não fosse a presença, no tempo certo, do ar e da sonoridade militaristas dum trombone da banda do circo, a dar-lhe stamina.
Quanto ao prazer da mesa, Zeca Monteiro dizia sempre "presente" à convocatória que Lula da Silva fazia "à brigada de sócios" para eventos pantagruélicos, que, invariavelmente, terminavam com outros não menos lúdicos, e, com franqueza, de mijar a rir!
É assim que, da responsabilidade dos frangos confeccionados e ingeridos na Casa do mesmo nome, restaurante na zona dos Restauradores onde Zeca Monteiro estivera a confraternizar com a referida "brigada" de amigos, acometido por irreprimível flatulência, mais do que por premeditado comportamento de atormentada víscera oca, ou por erro de alquimia, Zeca Monteiro sentiu e consentiu, paulatinamente, a fuga de radicais voláteis pelo epónimo colon, até ao fim de linha.
Quintanilha tocava vários instrumentos convencionais, de sopro e cordas além do acordeão, e não convencionais, com destaque para o serrote, em partituras clássicas, e bomba de encher pneus, em partituras ligeiras.
A alegria estonteante com que recordou as variações que Quintanilha extraía dos instrumentos de sopro foi tal, que o imitou, desferindo nas barbas do Anão, que coincidentemente observava da coxia a atividade na pista, um potente acorde dissonante. E logo quando o Anão preparava o plano para animar o intervalo que separava o desmontar do “Salto Mortal” dos trapezistas voadores, e o montar das grades da jaula e restante parafernália de segurança para a exibição do número das feras – corpulentos leões da Abissínia – depois de já terem atuado os crocodilos do Nilo, serpentes do Amazonas, tigres da Malásia, ursos polares, e até um hipopótamo e um camelo, deixando aquele caudilho de saltimbancos à beira de um ataque de nervos e de outras manifestações fisiológicas, desorientado para o restante espetáculo.
Zeca Monteiro a cagar-se de riso, claro! Até porque o Anão fez várias tentativas para sair pelo local de entrada, não o tendo conseguido ao esbarrar com a presença lacrimejante de riso de Zeca Monteiro; denunciadora de atitudes de baixo quilate social. O Anão de Xabregas e o seu grupo de saltimbancos maltrapilhos, acabaram por sair, banhados em lágrimas por outra porta, já que assim evitariam um alto concorrente de nonsence.
Daí até ao fim do espetáculo mais não fez que cirandar por entre as atuações, entrando e saindo a medo e à deriva, tentando exorcizar, de soslaio, o pesadelo hilariante de Zeca Monteiro.

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