segunda-feira, 1 de junho de 2009

Despedida

DESPEDIDA
Com o peso de setenta e quatro primaveras em ombros, deslavadas, insossas e rascas, a senhora Arminda Honrada continuava analfabeta, ou cega para a leitura da escrita, como contava, com mágoa.
A impressão digital, da responsabilidade do seu dedo indicador da mão esquerda, continuava a única forma de identificação, além do retrato do bilhete de identidade, claro! O dedo indicador da mão direita, mais utilizado nesta função de verificação de pessoa, parecia mais um pequeno pau de vide retorcido e cheio de nós, um trambolho tal a anquilose pela usura das tarefas domésticas, muitas sob intempéries.
Dizia-me, certa tarde, Arminda:
- Olhe; trabalhei toda a vida, desde muito nova. Comecei por servir em casas boas e honestas, de professores. Levantava-me cedo e, quantas vezes, a noite já espreitava a madrugada com a lua a voar bem alto, e ainda passava a ferro, bem de pé; outras vezes, não foram poucas, me dizia a senhora professora quando calhava ir a essa hora ao quarto de banho: -Vai-te deitar, Arminda! já é tarde! - Tinha a obrigação e o zelo à flor da pele; só me encostava depois de tudo pronto e arrumado; sempre fui muito fresnética.
Recordo o respeito e a educação que havia naquele tempo. Hoje; são as raparigas que se atiram a eles (rapazes). Não têm vergonha. Mostram as tetas por tudo e por nada. Bem; tamém as tetas!
Já espigadota, surpreendia-me, a miúdo, a obediência ao mandamento: Crescei e multiplicai-vos!-; a par com alguma concorrência de gineceu, que começava a martelar-me a moleirinha. Sismei: É chegada a altura de me arrumar! Pensar na boda! - que nunca seria de arromba, nem o dote grande coisa.
Carolino fez-me o rente; rascava a asa com olhos meigos. Comá sim todos pimpam (…) Casei-me e tive quatro filhos. Alguns são já reformados. Dantes toda a gente tinha uma porrada de filhos; todos descalços e com saúde; hoje, ainda estão na barriga da mãe e já estão podres ou tolheitos! Só se comem venenos, agora! Tudo era mais puro antigamente! O meu homem bobia muito. Então, aos domingos, era demais: bebia, bebia, bebia… De tarde ia com os bois pró monte, via dois caminhos, e só fazia tontices. Era mau como as cobras e fez-me muitas desfeitas. Ameaçava-me muito e eu não podia dizer nada; boca calada senão caía bernarda. Um temeroso chefe de família! Estas ameaças esmoreceram um tantinho quando os filhos cresceram e lhe começaram a arregalar os olhos até às orelhas. Deus, não dorme (...) Bem, em quem mais poderia mandar Carolino, senão em nós e no gado!...
Carolino já lá está, vai para 18 anos. Bateu a bota rápido. Deus chamou-o e ficou-se como um passarinho. Faz-me alguma falta.
Sabe? - apontando Arminda para as partes vergonhosas - arrumou-se-lhe por baixo! Todo inchado! Morreu, tinha em baixo macho e fêmea inchados (…) assim me disseram no hospital. Carolino esteve duas semanas hospitalizado e mandaram-no de volta para casa, despedido. Regressado a casa, já a pensar no sacramento da extrema-unção, Carolino chamou-me e disse-me: - Arminda, perdoo-te tudo se me perdoares. Se achares bem, chama o Lotário que eu deixo-te tudo que queiras.
Perdoei-lhe mesmo sem a presença do Notário!
“Oh… Que eu viva mais uns aninhos…” - disse, por fim, Arminda Honrada.

Nem sempre a despedida tem este alívio nostálgico, resumido ao engrunhar de lenço branco. Bem pelo contrário: A despedida é, quiçá, o momento que desencadeia o sentimento mais doloroso da vida. A despedida condiciona um estado de alma indescritível e intransmissível.
Sempre presente na diáspora, no infortúnio e na morte.
A omnipresente lágrima, a fio, ou furtiva ao canto do olho.
Alguma da música mais elaborada foi composta para contextualizar e dar a maior solenidade a este ambiente taciturno, emprestando-lhe uma atmosfera musical de missa funebre: O Requiem (Missa de Requiem). Verdi, entre outros compositores, fê-lo prodigiosa e magistralmente.

Ómega Três, um amigo que Deus tenha, do signo dos peixes, visceralmente traquina, comovia-se facilmente até às lágrimas, quando o encontro lhe trazia à presença gente do peito. Assim aconteceu um dia, aquando da visita de um amigo comum, em Lérida, Espanha; paragem onde havia feito as pazes com o trabalho, como agente de restauração, e peito (...) ao corpo e à alma de uma jovem que amara até ao último suspiro.
Por instantes, de memória já perdida no tempo e no espaço, Ómega Três entendeu avivar nesse encontro, entre outros temas aleatoriamente escolhidos, o seguinte:
- Não se me varre da memória a lembrança de Óskar, o Juiz Desembargador amigo de meu primo Rebelde, que acabou carcomido pela doença, transformado num bicho desfigurado da Criação. O cancro deixava-lhe uma barriga magra, escondida em pele de cobra, que pouco pesava aos ossos lambidos de musculo e, por tal, poucos vermes medrariam, tão consumida a carne estava.
O Juiz pertencia a uma família de cineastas, com muitos e célebres Óskares no seu clã. O Desembargador, que nunca acreditara em Deus - assim o dizia - não foi, por isso, a Fátima ou ao fim do mundo para recuperar o corpo que se perdia rapidamente a favor de nada, num apelo patético à vida. Talvez a sua heresia, (sabe-se lá!...) o tenha tão duramente castigado na carne - terão dito aqueles que acreditam ou defendem que este mundo e esta vida são plataformas de sofrimento e penitência, e não de prazer (…). E que a inteligência humana é a responsável por tudo isto (…) - dirão outros sábios e outros videntes (…) - havendo encomendas e fatos para todos os gostos!
Se a condição humana vive do sonho e da experimentação, e se feitos nós à imagem e semelhança de Deus, podemos, na esteira de Einstein, ser um sonho que Deus sonha, e o nosso futuro muito relativo.
Mas, mesmo consciente da guilhotina que descia predadora e inclemente em marcha lenta sobre o seu magro pescoço, Óskar mantinha-se de pé e botas postas.
As vilezas dos homens, as traições e dureza dos homens, as injustiças dos homens, a agonia da carne e o silêncio omnipresente de Deus: massacres, saques, guerras, batalhas, vitórias, derrotas, violência, vilanagem, prepotência, crueldade, mentira, bastardia, sobranceria, perversidade, ruínas, opulência, escravatura, incêndios, e todas as marcas da bestialidade, conhecidos de Oskar, não seriam obstáculo à reconciliação com a Divindade. Não seria o pendor aterrador da antonomásia de "Todo Poderoso" que faria esse milagre. Não. Nem troca por troca. Bastava que Ele deixasse escapar um murmúrio de impotência perante a dor e o sofrimento, e sussurrasse que, na” criação humana”, não previra defeitos na génese, organização e qualidade do código genético dos humanos e, como intenção bastante, o advento de reparar erros existentes em matéria tão complexa, como é a condição humana. Sem falsificações nem contrafações.
Aí, de ateu a gnóstico era um pulinho. E a reconciliação ao virar da esquina.
A realidade nua e crua com que Óskar se confrontava, levava-o a desejar morrer. Já! Do coração! Que é morte santa (…)
Como só os santos têm direito a este requinte no instante da morte, a esposa vivia apavorada com a sentença a que os deuses tinham condenado o marido, e tudo faria para regenerar a saúde de Oskar e resgatá-lo ao impossível.
Suplicou-lhe: “Oskar!, já que os médicos te desenganaram quanto ao tempo de vida que terás, deixa-me ao menos ouvir a opinião do curandeiro de Tresmundes: Rato Sabido.
“Se isso te tranquiliza… venha ele!”, -disse-lhe Oskar-.
A luminária de Tresmundes (residente em três mundos, como facilmente se deduz do topónimo) aparecera, e o Jurista explicou a este bruxo o que o ralava, e esperou o parecer do constado "milagreiro", que não tardou o diagnóstico e disse: “Você o que tem é uma hidropisia Constantinopla cuja qual lhe provoca uma solidão que o leva às campânulas da morte!” “Estás satisfeita?” - perguntou o Juiz-, “Estou” - respondeu a esposa resignada em compaixão e lugubridade. “Também eu!... Até que a morte nos separe, Maria" - Disse o Juiz.
O Meritíssimo corria agora ininterruptamente a final. A esposa guardava os últimos pedacinhos de vida do amado, revelando, a posteriori, esse retrato de eterna recordação: “Para o fim" - dizia a esposa - "já mal abria os olhos. Estava, então, a dar-lhe de almoçar e disse-lhe: “Óskar! abre os olhos, parece que já não gostas de mim!”. Ele entreabriu-me os olhos; dei-lhe um beijinho e segredei-lhe: vês! Estás tão bonito! Fechou os olhos, deixou de respirar, ficou muito quieto e nunca mais respondeu.

A morte é um dos temperos mais apetitosos do drama. Desde sempre. Sê-lo-á sempre, presumo.

Em Covas de Barroso, as criaturas nascem e morrem como em qualquer outra parte do mundo. Aí, onde havia rezas para quase tudo e crenças em quase tudo, qualquer homenagem feita a essas tradições cairá no goto, ainda que respigue alguma alteração ou mesmo adulteração pela usura dos tempos. Peço desculpa se me julgarem juiz em causa própria, e perdoar-me-ão, suplico, se aqui descobrirem algum pecado! Até porque este relato já pertence à tradição oral.
Naquele tempo, pelo menos, o dia-a-dia das gentes de Covas era diferente doutros lugares e doutras paragens, na maneira de estar e de ser, e de sentir. Ainda o passado se esgueira à esquina e com ele se esfumam os códigos de conduta sociais e comunitários que vestiam uma roupagem muito própria e muito sentida. Quem procurar uma costela do Portugal primitivo, justiceiro que nem revolucionário, dicotómico de agreste e selvagem a bondosamente ingénuo, vá nostalgicamente a Terras de Barroso. Lá encontrará o último reduto desse micro universo com atmosfera própria. O vento que sopra na cordilheira mais setentrional Gerês, e o fumo que ainda se esgueira e escurece algumas chaminés locais, teimam em mostrar o passado ao presente.
Mas do que de genuíno e diferente falo é de funeral. De exéquias. De mortalha. De enterro, como aí se diz. Da partida para o além. Para o desconhecido, ou para o Céu! Sem limusinas, sem cortejo automóvel, sem funerária de marca, sem grinaldas: quando muito carreta. Uma ou outra mulher carpideira, de luto pesado; fitas negras à volta das mangas dos casacos; uma ou outra flor. E a solidariedade de quatro braços musculados pelo trabalho no duro, e outras tantas mãos, empenhados no ritual de levarem a campo-santo quem, felizmente, ainda tem onde cair morto.
Os dias de hoje, com todos os motores de busca de conhecimento ou informação que a Internet nos proporciona, não identificam forma idêntica ou parecida com aquela que vos conto, em matéria fúnebre.
Oxalá, o ancestral costume de fazer parar o féretro junto à porta de casa do defunto, quando a caminho da eufemisticamente chamada última morada, após missa de corpo presente, que vigorou nessas paragens se tenha conservado. E resista a ir pró maneta!...
Esta paragem destinava-se a uma última palavra de despedida ou expressão de sentimento do ente mais próximo, junto à habitação que lhes deu abrigo e conforto ao longo da vida.
O coração da senhora Brígida Bemposta silenciou-se sem apelo nem agravo e o tum-tá que nunca dera tréguas ao cansaço, deixou definitivamente de se ouvir. Recebera, sem a mínima reserva, a extrema-unção, ungida com óleo em nome do Senhor, e demais bênçãos da da Santa Madre Igreja dedicadas à cerimónia do momento. Todo o apoio de familiares e amigos. O marido, Senhor da Casa, arrastava-se já, anquilosado por graves artroses das ancas, pelo que não pode ir ao ofício de corpo presente, ficando em casa, sentado à janela ao jeito de namoradeira, à espera do ataúde. Quando o caixão e a ocupante defunta se aproximaram daquela que fora a sua casa durante toda a sua vida, o reverendo mandou parar o cortejo fúnebre. Como sempre, perguntou se alguém da família, à laia de despedida, quereria dizer algo, alguma elegia, à defunta. O esposo levantou-se a custo, com o apoio das muletas e disse a choramingar: “Olha, Maria, sempre foste boa rapariga, boa patroa e boa mãe. Não sei para onde vais nem onde ficarás" - dizia erguendo a cabeça e o olhar para o azul frio de um céu distante e mudo na resposta às angústias e melancolia de Catarino; e continuou: - "mas vás para onde fores uma coisa te digo:"- tomando o peso aos genitais (grães em léxico autóctone) com a mão esquerda - "lá não encontrarás um par de quilhões, como este que aqui deixas". “Siga, siga” - ordenou o padre!...

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