quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra!...

Quem venha da Madalena, ou, simplesmente, tenha ido passear saborosamente o olhar pelo curso do rio Tâmega e toda a envolvente, e acabe de atravessar a velha Ponte Romana, ao afluir ao Largo do Arrabalde dá de caras com um emblema: uma Casa que, de Saúde, não se ofende com eventuais desígnios de qualquer enquadramento na Rua do Postigo das Manas. Edifício com varanda longa, arqueada, com protrusão para o referido Largo a piscar o olho em angulo bem aberto desde a referida Ponte até à Rua Direita, dando-se em orgulhosa graciosidade, atenta ao fervilhar de ideias e acções; de arquitectura a cair no goto estético do querido Engenheiro Bôlas, não sendo o projecto da sua lavra, convenhamos! Se a visão já for mirrando, cocos por nozes, poder-se-á tomar como referência a fatia de bolo do casario que separa a Rua Direita da Rua de Santo António, e olhar à esquerda! Lá estará, também, emergindo do telhado da varanda, uma mansarda a espreitar e a perscrutar a azáfama e o murmúrio do Arrabalde.
Arrabalde, esse Ex-Libris, onde tudo se entrecruza: Arqueologia, Banca, Comércio, Farmácia, Justiça, Património, Religião (pelo menos em tempo de procissão) e Saúde! Um cenário a alvitrar a Nadir Afonso para a respectiva inclusão na sua produção pictórica de pontes ou cidades com história.
Já com os olhos cheios de imagens e sentimentos, presentes e passados, vamo-nos inserindo no Centro Histórico do Burgo, subindo a Rua Direita (a mais directa ao nosso destino); não é recta, mas reivindica grande parte do património histórico e arquitectónico da menina dos olhos de Trajano; prossigamos dispostos a alcançar a “Sociedade”: é lá que se situa o epicentro deste relato escatológico.
Se a caminhada não for apressada, como convém, haverá tempo para fruir o encanto das varandas em madeira, de arquitectura deliciosa, mais ou menos floridas, mais ou menos embelezadas, que parecem estar à espera do apreço e da saudação de quem passa, retribuindo com o regalo e o consolo dos matizes das suas cores.
Tempo para lembrar o som da sirene e da sineta das ambulâncias que aí passavam em chinfrineira pungente, curvando em duas rodas ao encontro do velho hospital no mais curto espaço de tempo possível. Uma ou outra vez, já agora, a autobomba dos "B.V.", subiu essa artéria citadina, acelerada pelo planger de um sino e a condução temerária mas segura de Rolando, empanturrada de soldados da paz, de porte garboso e capacete metálico amarelo faiscante, com emblema de fénix (penso...), lotação a sobrar para os estribos depois de preenchidos os lugares sentados em banco individual e ao ar livre, em excitação crescente, abnegadamente preparados para o combate às chamas.
Tempo, ainda, para alguns - ponho o dedo no ar - que aí viveram, aí brincaram, aí conviveram, aí mourejaram, poderem actualizar mudanças nos usos e costumes.
Por aí esteve sempre por perto o eflúvio do néctar dos deuses que criava corrupios de gente masculina, dando força ao velho aforismo: quando bebe um português bebem logo dois ou três... "Central", o santuário dessas romarias...
Fantasmas terão habitado a Rua Direita, mesmo em frente à casa que viu nascer o Coronel Bento Roma, e ao Lar onde sempre morou D. Hermínia, que mimou alguns desses espíritos com a fofice do colo.
A mesma Hermínia a quem um galã dedicou o piropo: - H. tens um traseiro que mais parece a popa de navio -; Hermínia não se perturbou com a graçola dando costas ao aprendiz de galanteador; apenas o olhar com o rabo do olho, e meigo, disse: - navio! e de guerra! - puumm!... -; ah, ah; meu filho ainda não tens ronha…, e já podia ser tua mãe...- disse carinhosamente. O autor do galanteio nunca terá revelado ao pai o desabafo de Hermínia.
Continuando o passeio, aqui onírico, vamos encontrar a “Eléctrica Moderna” no nº65, gerida pelo empresário Fanhonha, que durante anos e anos se ocupou do som - altifalantes de campânula e respectivos amplificadores -, para anunciar tudo a todos, quer no campo de futebol, quer nas verbenas, quer nas festividades citadinas, quer no natal.
A propósito de jogos de futebol, é célebre a figura de linguagem imputada a Fanhonha na ocorrência de empate: “- Desportivo, tantos..., os outros, o mesmo...”
Nunca é tarde para prestar um merecido agradecimento a Fanhonha, e cá vai: este empresário da respectiva "Eléctrica Moderna", além de emitir sábios conselhos, sempre emprestou as suas aparelhagens sonoras ao conjunto musical “Tigres”, a custo zero: bem haja!
Outras lendas dessa paróquia pairaram aí como fantasmas, à espera de oportuno reconhecimento.
Continuando a nossa caminhada de ladeira, seremos forçados a entorpecer momentaneamente os sentidos para resistir ao apelo e provocação do “Pasteleiro” e do vinho Três-Marias; dobramos a esquina daquela que fora Cooperativa, olhos nos olhos com o escritório do causídico Domingos Costa Gomes, e inflectimos para a praça da República; o pelourinho indica-nos que chegámos ao nosso destino: “Sociedade”, e entramos.

Fazendo jus ao título deste conto, quase todos teremos por certo que o ser humano é complexo em tudo que lhe diz respeito. A conduta não foge à regra, toca mesmo o transtorno ciclotímico; os altos e baixos no humor, na carteira, na carreira, na saúde, são mais a regra que a excepção; constatação verificada através dos tempos, de elevada estatística. Parece assentar como uma luva a clarividência de Shakespeare, na sua reflexão sobre os viventes: - "O azarado não tem outra medicina que não a esperança"-.
Por isso mesmo, ninguém vai estranhar que algum cirurgião se desse a melhor desempenho e êxitos sobre a luz fria, implacável, e atenta da luminária, sempre que Dionísio lhe aquecesse as veias e o átrio da criatividade.
Sentado em cadeirão, vamos encontrar um ilustre discípulo de esculápio lendo o jornal: o mesmo que bebia e apreciava os ensinamentos de outros sábios mordidos pela seiva da serpente: “o médico que só sabe medicina, nem medicina sabe.”
Sabia-o e praticava-o. Tinha mais preceitos que preconceitos. Sentia por perto Shakespeare.
Dr. A, lia os periódicos: indiferente a quem aí se entregasse de igual modo a leituras, quem entrasse ou saísse; alheio, pois, a todo e qualquer comentário que emergisse do ambiente envolvente. Não dirigia a palavra a ninguém enquanto se entregasse ao deleite da leitura e ao refúgio no esquecimento das más rosas…Respondia a cumprimentos de cortesia quando confrontado directamente e na situação oportuna.
Essa pacatez, essa entrega ao silêncio da leitura e meditação não se interrompiam por nada. Nem mesmo a emissão, de flatos, quer singulares quer em salvas, sonoros e relativamente frequentes.
O Presidente da "Sociedade", pessoa de elevada cotação social, terá observado este "destempero" anti-social, que o encolerizava, mais e mais, com o correr dos dias até pela densidade estatística dos eventos...; e já não iria aguentar por muito mais tempo aquilo a que já sentia como ultraje, um enxovalho que abanava perigosamente o prestígio de Chefe da Casa.
Prenhe de revolta e raiva, o Presidente preparou, com apuro, o órgão auditivo: lavagem cuidadosa nos "Enfermeiros Reunidos", para que nenhum cerúmen ou outra impureza impedissem uma audição exacta e atempada; em suma, considerou um cenário de duelo para desagravar ofensa grave, a que só faltaria a escolha da arma, o padrinho e a etiqueta; e, a esbanjar coragem, esperou em vigilância activa!...
O rastilho para o desagravo ateou-se facilmente, com seria de esperar. Com o motivo produzido e no ar, disse, inquisitorial, o Presidente:
"Dr A, há já algum tempo que os meus ouvidos são desagradados e enxovalhados pelas suas atitudes escatológicas, tão inconvenientes e tão atentatórias ao bom nome e reputação desta Casa: espelho e orgulho do que de mais distinguido e nobre esta cidade teve e tem no seio das suas famílias.” - E continuava, lançando um olhar furibundo: “Além de mim, outras pessoas honradas, entre elas distintas Senhoras, engrossam o rol de denunciantes dos seus arbítrios pueris, que roçam a boçalidade e que não se adequam a esta Casa e muito menos se compaginam com o seu grau académico e a sua posição social. O senhor Dr. sabe perfeitamente que essas “coisas” têm lugar próprio para a sua produção, aqui bem perto, aliás; reprimir, ainda que momentaneamente, actos rebeldes ou censuráveis pela grei é um dever, uma obrigação que devemos respeitar até ao limite das nossas forças; e não deixar ao arbítrio de qualquer víscera mal educada e impertinente comportamentos execráveis, a toda a hora. A sua irreverência, Dr.A., mais que fazer-me estourar de riso, repugna-me e leva-me a paroxismos de raiva. Tomo a liberdade de lhe recordar solenemente: aqui ainda há pessoas decentes. "Dr. A. não precisou de grandes elucubrações ou álibis (não obstante possuir atestado médico para o referido acto escatológico); respondeu em tom irónico e pacificador: - E indecentes! – Nova ventosidade pôs termo ao duelo... e ponto final no patuá; e o regresso à leitura prazenteira.

Sem comentários:

Enviar um comentário