sábado, 28 de novembro de 2009

Rádio Moscovo não fala verdade!

Se este assunto é ou não candente, é ou não oportuno, ou se chega descontextualizado à redacção, dependerá sempre da subjectividade e do coração de cada leitor, ou da interpretação que cada “actor” der a esta peça. Não é, pelo menos, despiciendo, asseguro-vos. É, renovadamente, dar voz a um simples que teve um projecto de vida no horizonte, por direito próprio e natural ambição.
Alguns vocábulos terra a terra, do quotidiano, pintalgam aqui e ali estas notas biográficas, que a galeria municipal nos permitiu buscar ao sótão da memória, proporcionando-nos o guião e a atmosfera temporal, aqui postos ao sabor e ao gosto do cenógrafo!
Há sempre alguém que fica em pulgas ou vista a pele do lobo quando eclode e ataca de frente, alguma ideia febril, alguma visão que tenha a ver com aventuras pueris protagonizadas por respeitáveis marginais à conduta "socialmente correcta": A experiência tem-me confirmado uma forte relação do pulsar do subconsciente com a conjuntura e o tempo do texto. É o caso. E gosto de aproveitá-la, porque ninguém se banha duas vezes no mesmo subconsciente. Mesmo que de alguma croniqueta se trate, digo-o por suspeita antecipada, da apreciação legítima dos meus pacientes leitores. O juízo é livre!
Depois deste preâmbulo, ato o fio da não-ficção apresentando o “modelo”: o Senhor Alfredo Gonçalves Pinto, como consta na conservatória do registo civil.
Este Cavalheiro, ao tempo mais conhecido que os tremoços – perdoe-se-me a metáfora -, foi sendo tratado por Pinto Fundão, marca registada no universo dos Pintos, e que tinha a ver com a sua naturalidade: do Fundão. Poderia ter sido baptizado de Aníbal, Bernardo, Carlos, Duarte, Eliseu, Francisco, Gilberto, Hugo, Júlio, Lino, Manuel, Narciso, Óscar, Rui, Sérgio, Tiago, Ulisses, Vítor, ou Zélio. Tinha o alfabeto e o vocabulário onomástico à mão e de escolha livre. O alfabeto não era ainda matéria vendável, nem colectável, o que trazia a ganância arredia. Já o vocabulário, com a introdução do marketing, não ponho as mãos no fogo... No melhor pano cai a nódoa!
Poderia ter sido Alfredo de Lisboa, do Porto, do Entroncamento, ou outro qualquer da toponimia lusitana; adoptou Pinto Fundão. Não quis nenhum outro epíteto, fosse ele o mais pomposo. Não se embeiçou pela nomeada: Marceneiro, Krauss ou Nobel. Escolheu Pinto Fundão, não por modo de ser fundamentalista – baralho de cartas à parte! - ou fundador de qualquer teoria ou movimento revolucionário. Não. Escolheu-o, porque, simplesmente era “Fundanense” e queria sê-lo até ao último suspiro.
Porquê, então, a intromissão a descompasso desta figura, perguntarão? Entro em matéria.
O Senhor Alfredo Pinto era um homem às direitas não obstante o posicionamento de esquerda, assumido e, por vezes, do avesso, até atravessado! Bom cidadão, bom marido, bom pai; não foi bombeiro, pese embora o seu pendor para encalhar em atitudes altruístas. Podia ler-se na manga publicitária da “sua” avioneta, lá no alto bem acima dos telhados do Largo do Arrabalde quando lhe proporcionavam algum passeio aéreo, a rasgar o vento: "Reparações Pinto Fundão: no prestígio nem um arranhão”!
Pinto Fundão, não foi santo, nem pecador: um homem de bem, ainda que a balança da justiça tenha, por vezes, dois pesos e duas medidas. Descendente de Adão, aquém se atribui mau sémen, tinha, por isso, algumas virtualidades, algumas fraquezas, alguns pecadilhos, que mais não eram que afirmações da condição humana que ele queria redentora. Por entre a sua idiossincrasia, matriz que consubstancia a expressão: “ele é assim” ou “cada um é como é”, sobressaía, episodicamente, um rosto magoado sempre que a sorte era madrasta nos negócios, nas reparações de electrónica, ou o “score” do êxitómetro profissional se revelava pouco edificante. Poderia ter engrossado a Diáspora Portuguesa na demanda penosa de melhor sorte. Não o fez arreigado que estava ao solo pátrio, fixado no dia em que um sonho lhe trouxesse finalmente um sono reparador de infortúnios de toda a espécie. Os tempos eram difíceis em todos os aspectos. Muitas vezes era preciso deitar mão (outras vezes a mão…) ao que se oferecia como ganha-pão ou sustento, quer engolindo sapos, quer fazendo das tripas coração (alquimia contranatura…). É assim que, entre muitas outras soluções de “desenrasque”, vamos encontrar o amigo Pinto na procura abnegada de capicuas da sorte, pedido de encomenda, mais um, feito por amigo do peito, pelo menos até então, um notável comerciante, entrincheirado na mesma rua em que Pinto Fundão tinha a sua moureja, mas do lado oposto. Estes bilhetes capicuas, seriam, posteriormente, vendidos aos espanhóis, “a meias” – isto é: metade para Pinto e metade para o dito comerciante-, que as procuravam como moscas o mel. Foi, neste contexto, que se dedicou à tarefa estóica de encher um saco - que habitualmente acomodava cinquenta quilos de batatas- de bilhetes de eléctrico da Invicta Cidade do Porto. Todo este trabalho acabaria por ter um desfecho tão inglório quão decepcionante; afinal de contas, o referenciado comerciante acabaria por lhe comunicar, sem apelo nem agravo, que nenhum daqueles números prestava para o negócio, e ele, o comerciante, apesar da sua influência patrimonial, social e persuasora, tinha como certo o insucesso. E, antes que caísse o Carmo e a Trindade, o comerciante procurou confortar e aplacar a ira, mais que justa, a Alfredo, com uma palmadinha na sêmea dorsal, dizendo-lhe que haviam perdido a batalha mas não a guerra.

Em desabafo vos digo que este citado comerciante, de apelido Guimarães, foi tido como defensor encarniçado das liberdades da República, e que possuía um fascínio genético para atrair os amigos para registos parodísticos, ou, à mistura: o afiar do dente e o apuro do ouvido ajudados por uma visão de Lince, atributos, quanto baste, para uma critica acutilante de tudo!...-: Guimarães também escutava a Rádio Moscovo.

De regresso ao amigo Pinto Fundão, para recordar, ainda, a paciência olímpica que brindava aos amigos, habitual e preferencialmente mais jovens “os jovens são o futuro; a esperança do amanhã” dizia, como testemunharam três rapazes, hoje crescidos e bem situados no "ranking" social e cultural deste país, que com ele privaram bastantes vezes, em república que partilhavam a essa altura na Rua Almirante Leote do Rego, r/c no Porto. Onde falavam de tudo, de todos e de… todas, oh linda!
Pacientemente, também, procurava ocupar o tempo, esse tempo em que dava cartas, a jogar sueca em que era doutor: táctico, estratega, intransigente, rigoroso e exigente de um elevado nível de desempenho aos “parceiros”. A calma só seria interrompida, por alguma jogada néscia, ainda que fortuita, de um qualquer jogador, ou pela trafulhice, dita “arrenúncia”, premeditada. Aí o caldo entornava, espalhando o mais vivo azedume verbal sobre os violadores das regras do pano verde, dando corpo ao mau ou vilão da fita. Também se abespinhava em sério aviso, quando, proveniente de um ou outro engraçadinho, lhe chegava a mostarda ao nariz, transfigurada em aroma de feijões requentados: - falou Ferreira da Costa -, ralhava aspergindo carolinos!
Tinha ainda outra faceta que caía aos amigos como ouro sobre azul: o seu aturado e vocacional apetite para escutar a difusão da rádio Moscovo e passar as “últimas”. Tão célere quanto a emissora nacional houvesse dito: rádio Moscovo não fala verdade! E já fazia isto desde o tempo dos artesanais receptores de galena.
A sua profissão oficial registada na conservatória, não sei se correspondia à ocupação de facto. Tão pouco sei se era um “self made man” ou de carreira, deixo isso para os historiadores. Sei, isso sim, que dizia tratar por tu os cinco melhores mecânicos da Europa, a esse tempo! O equivalente a tratar por tu os melhores jogadores de futebol ou as melhores estrelas de Hollywood: na minha perspectiva.
Verosímil é o facto de estar acantonado no que eu chamaria de pequena empresa/oficina, o que os intelectuais consideravam atelier e os demais estaminé de mecânica, que dava abrigo aleatoriamente ao trabalho, ao ócio e ao lazer.
Bom, em data imprecisa, na sua chafarrica, este nosso evocado dedicava-se à reparação de uma telefonia, cuja avaria a havia (telefonia) silenciado por ter queimado bobines. O dono do aparelho avariado não largava a porta de Alfredo, pressionando-o com a sua presença e comcomentários pouco lisonjeiros, apontando, em investidas sucessivas, o dedo indicador da mão direita para o céu, lembrando a responsabilidade inerente à publicidade que Pinto colocava na manga da avioneta….
Pinto que já estava farto das rondas assíduas da PSP, efectuadas por polícias protótipo, como os agentes Curalha e Totó, entre outros, ao mando certeiro de Isaac (um intrépido guardião da noite, Ilda que o diga...). Murmurava Pinta, entre dentes: - Só me faltava ter que aturar mais este (cliente); sempre aqui que nem ferrinho, como carranha colada em dedo, a morder as canelas e a recalcitrar, só porque o arranjo do aparelho, que ele diz urgente, vai a passo de caracol-. Esta insistência saturava um morto, quanto mais quem, sem mácula, como Alfredo, não podia perder as estribeiras ou o verniz com clientes, por mais broncos que fossem.
O concerto do rádio demorava-se pela falta de algumas peças que tardavam em chegar de um fornecedor de Lisboa a quem haviam sido encomendadas atempadamente. Este impasse somado ao afundar da credibilidade, a olhos de ver, junto do cliente, traziam o Pinto numa pilha de nervos e à beira de um ataque, dessincronizado, quase em estado de choque, completamente fora de si tal a indignação e cólera.
Resolveu, em boa hora e bem, fazer o protesto por escrito; a comparação metafórica que utiliza é de se lhe tirar o chapéu! Se sabiamente o pensa, melhor o escreve em bilhete-postal dos Correios de então, nos seguintes termos:
“Meus Caros Senhores: não sei o que e como dizer deste insólito e condenável atraso no envio da encomenda. Com o correr do tempo, começo a pensar que terei que vos recomendar, direitinhos, ao pai da humanidade, já que alguma leviandade ou desconsideração da vossa parte, estão a querer atingir-me por completo. Levo semanas a fio à espera que chegue a mercadoria que vos pedi. Ao menos, um pedido de desculpas com explicação plausível da delonga. Sou vosso cliente de longa data e, até ao presente, nunca houve de parte a parte o mais pequeno melindre ou contratempo na entrega atempada de encomendas. Desta vez, com tanta demora e silêncio, Vossas Excelências passaram as marcas do tolerável e do "fair play" que sempre tiveram.
Direi mesmo: é mais fácil espetar um prego de cabeça para baixo que entender a orgânica dos vossos serviços. Assina Afredo Pinto.

Sem comentários:

Enviar um comentário